UNIDADE VI

1.  AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM EDUCAÇÃO NO BRASIL

1.1 Aspectos Históricos da Implantação do Plano Nacional de Educação - No Brasil

Desde a chegada do primeiro governador-geral, em 1549, trazendo os primeiros jesuítas, até a expulsão deles pelo marquês de Pombal, em 1759, a Companhia de Jesus dominou o cenário educacional brasileiro. Com suas escolas de primeiras letras, seus colégios e seminários, os jesuítas exerceram amplo trabalho de catequese dos nativos e de educação dos brancos que aqui aportaram ou nasceram, principalmente, mas não exclusivamente, aqueles de classes mais abastadas.

Fica fora do objetivo desta notícia descrever e avaliar o trabalho e a importância da educação jesuítica no tempo do Brasil colonial. O que interessa aqui é apenas registrar que, nesse período, a educação não foi um problema que emergisse como um assunto nacional, não obstante tenha sido um dos ingredientes das tensões permanentes entre a Ordem e a Coroa Portuguesa e cuja solução levou à expulsão dos jesuítas em 1759.

A expulsão dos jesuítas criou um vazio escolar. Conforme mostra Maria de Lourdes Mariotto Haidar, a insuficiência de recursos e a escassez de mestres que substituíssem os jesuítas desarticularam o trabalho educativo no País, com repercussões que se estenderam por décadas, alcançando o período imperial. Nessas condições, os efeitos da reforma que Pombal realizou na educação portuguesa foram, no Brasil, sobretudo negativos.

Com a vinda da Família Real, já no início do século XIX, a educação brasileira recebeu um grande impulso no que diz respeito ao ensino superior necessário para a formação de quadros, mas a educação popular permaneceu relegada a um segundo plano. Conforme Mariotto:

"O quadro geral da instrução pública no Império, enriquecido com a criação dos cursos superiores, não se alterou significativamente, entretanto, quanto aos estudos primários e médios, algumas escolas de primeiras letras e um punhado de aulas avulsas no velho estilo das aulas régias constituíram todo o saldo positivo do período que sucedeu à Independência e que precedeu à reforma constitucional de 1834.

Essa reforma (Ato Adicional de 1834) descentralizou as responsabilidades da educação popular, deixando-as às províncias e reservando à Corte a competência sobre os ensinos médio e superior. Mas as províncias, pouco aquinhoadas na arrecadação de impostos, quase nada puderam fazer em matéria de educação popular; e durante a segunda fase do Império, o que permaneceu foi um completo descaso nessa área: ainda que tenham havido algumas iniciativas interessantes, como a da criação das escolas normais, elas acabaram perecendo.

Nesse período, o quadro geral foi sempre o mesmo: escassez de escolas e de mestres no ensino primário. Com relação ao ensino médio, exclusivamente propedêutico ao ensino superior, prevaleceram as aulas avulsas apenas acessíveis às classes abastadas. É verdade que houve tentativas notáveis de estruturação de cursos regulares com propósitos amplamente formativos e não apenas preparatórios. O Colégio Pedro II, os liceus da Bahia e de Pernambuco e algumas outras poucas escolas são exemplo desse esforço, mas isso não foi suficiente para alteração do quadro geral. Mais para o final do Império, até mesmo as escolas acabaram afetadas pela mentalidade vigente, que via nos estudos de grau médio apenas uma preparação para o ensino superior. Não faltaram, contudo, principalmente na segunda metade do século, tentativas de reforma, mas a tendência de multiplicação das aulas avulsas e dos exames parcelados prevaleceu e apenas nas vésperas da República houve esforços no sentido de modificação desse quadro.

É preciso evitar, porém, que essa sumaríssima descrição induza a ideia de que, durante o Império, não tenham havido alguns homens notáveis capazes de perceber e denunciar a situação de penúria e descaminho dos ensinos primário e secundário. Entretanto, essa efervescência do pensamento educacional muito pouco ultrapassou o terreno das ideias e dos debates parlamentares.

A Proclamação da República, embora tenha alterado, em alguns pontos, substantivamente a ordenação legal da educação brasileira, pouco modificou o quadro vigente. Conforme disse Fernando de Azevedo: "À parte do laicismo, a infiltração das ideias positivistas e o movimento renovador de São Paulo, limitado ao ensino primário e normal e sob a influência das técnicas pedagógicas americanas, todos os outros fatos relativos à educação e à cultura acusavam, no último decénio do século XIX, a sobrevivência das tradições do regime imperial.

O positivismo de Benjamin Constant, embora radical nas reformulações propostas, teve pouca duração em seus efeitos. Nem mesmo a ampla autonomia concedida aos estados em matéria de ensino secundário e superior alterou o quadro existente no final do Império.

É verdade que a República, nos seus inícios, foi pródiga em reformas - Benjamin Constant (1890), Epitácio Pessoa (1901), Rivadávia Correia (1911), Carlos Maximiliano (1915) -, mas foi preciso esperar até a década de 20 para que, realmente, o debate educacional ganhasse um espaço so-cial mais amplo. Foi nesse período que a questão educacional deixou de ser apenas tema de reflexões isoladas e de discussões parlamentares para ser percebida como problema nacional, isto é, como problema afeto ao próprio destino da nacionalidade. Foi o que disse J. Nagle quando escreveu: "O que distingue a última década da Primeira República das que a antecederam foi justamente isso: a preocupação bastante rigorosa em pensar e modificar os padrões de ensino e cultura das instituições escolares, nas diferentes modalidades e nos diferentes níveis.

Os quadros social, político e económico dessa década, com a continuidade significativa das correntes imigratórias, a urbanização, as insatisfações políticas represadas desde a Proclamação da República e a intensificação da tensões entre a industrialização nascente e as crises do comércio cafeeiro foram altamente propícios para que a questão educacional se impusesse como de interesse coletivo e de salvação nacional. Aliás, foi nesses termos que os diversos movimentos sociais que então apareceram - ligados ou não aos partidos políticos - passaram a se preocupar com a escola popular, a sua reforma e a sua disseminação. Várias tentativas reformistas ocorreram em diferentes estados; foi nesse período que se iniciou uma efetiva profissionalização do magistério e que novos métodos e modelos pedagógicos começaram a ser mais amplamente discutidos e introduzidos nas escolas. Essa efervescência dos assuntos educacionais, esse "entusiasmo pela educação", conforme a expressão usada por J. Nagle, gerou uma 'atitude que se desenvolveu nas correntes de ideias e movimentos político-sociais e que consistia em atribuir importância cada vez maior ao tema da instrução, nos seus diversos níveis e tipos".

1.2 A Ideia de um Plano de Educação

Segundo Celso Lafer, a primeira experiência de planejamento governamental no Brasil foi a executada pelo governo Kubitschek com o seu Plano de Metas (1956/61). Antes disso, os chamados planos que se sucederam desde 1940 foram, segundo Lafer, "antes propostas, diagnósticos e tentativas de racionalização do orçamento".

O mesmo autor sugere que na análise do processo de planejamento convém distinguir "três fases: a decisão de planejar, o plano em si e a implantação do plano: A primeira e a última são essencialmente políticas. Apenas a segunda é um assunto estritamente técnico".

No caso do planejamento educacional, essa distinção é interessante, porque, como veremos, a ideia de um plano nacional de educação antecedeu, em muito, as primeiras tentativas de formulação de um plano. Foi preciso um longo período de maturação para que se formulasse explicitamente a necessidade nacional de uma

política de educação e de um plano para implementá-la. Como vimos, brevemente, na década de 1920 a questão educacional amadureceu e chegou à percepção coletiva da educação como um problema nacional.

1.2.1 Manifesto dos Pioneiros

A Revolução de 1930 foi o desfecho "natural" das crises políticas e económicas que agitaram com intensidade crescente a década de 1920. Compôs-se, então, o quadro histórico propício à transformação da educação no Brasil em um efetivo problema nacional. Além da profunda crise internacional que afetara também o Brasil, a urbanização crescente foi um elemento decisivo para a percepção coletiva da educação como meio importante para uma ascensão social cada vez mais difícil. Em 1932, um grupo de educadores e homens de cultura conseguiu captar na sua inteireza esse anseio coletivo e lançou um manifesto ao povo e ao governo que ficou conhecido como "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova", com redação de Fernando de Azevedo e a assinatura de 25 homens e mulheres da elite intelectual brasileira. Trata-se de um documento que extravasa o "entusiasmo pela educação" e o "otimismo pedagógico" que J. Nagle detectara na década de 1920.

A importância do "Manifesto" tem sido, algumas vezes, minimizada pela arrogância dos patrulheiros ideológicos, mas é fora de dúvida que se trata de um documento que constitui marco histórico na educação brasileira, por várias razões. Dentre elas, sobreleva o fato de que se trata da mais nítida e expressiva tomada de consciência da educação como um problema nacional. Além disso, o "Manifesto" continha um diagnóstico e era um indicador de rumos. É claro que, pelos seus próprios propósitos, o diagnóstico e o traçado de rumos foram expressos em uma linguagem genérica. Mas não caberia outra forma num documento político cujo objetivo era provocar sentimentos e atitudes e mobilizar para a ação. Levando em conta a importância desse documento, convém transcrever alguns dos seus trechos:

"Na hierarchia dos problemas nacionaes, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caracter económico lhe podem disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional. (...) todos os nossos esforços, sem unidade de plano e sem espírito de continuidade, não lograram ainda crear um systema de organização escolar, á altura das necessidades do paiz. Tudo fragmentário e desarticulado.

'Onde se tem de procurar a causa principal desse estado antes de inorganização do que de desorganização do aparelho escolar, é na falta, em quase todos os planos e iniciativas, da determinação dos fins da educação (aspecto philosophico e social) e da applicação (aspecto technico) dos methodos scientificos aos problemas da educação. (...) Os trabalhos scientificos no ramo da educação já nos faziam sentir, em toda a sua força reconstrutora, o axioma de que se pode ser tão scientifico no estudo e na resolução dos problemas educativos, como nos da engenharia e das finanças. (...) Em lugar dessas reformas parciais, que se sucederam, na sua quase totalidade, na estreyteza chronica de tentativas empíricas, o nosso programa concretiza uma nova política educacional, que nos preparará, por etapas a grande reforma...

'Assentado o princípio do direito biológico de cada indivíduo à sua educação integral, cabe evidentemente ao Estado a organização dos meios de o tornar efetivo, por um plano geral de educação...'

'A estructura do plano educacional corresponde, na hierarchia de suas instituições escolares (...) aos quatro grandes períodos que apresenta o desenvolvimento natural do ser humano. É uma reforma integral da organização e dos methodos de toda educação nacional (...)'

'Não alimentamos, de certo, ilusões sobre as dificuldades de toda a ordem que apresenta um plano de reconstrução educacional de tão grande alcance e de tão vastas proporções. (...) O próprio espirito que o informa de uma nova política educacional, com sentido unitário e de bases scientificas (...) tornará esse plano suspeito aos olhos dos que, sob o pretexto e em nome do nacionalismo, persistem em manter a educação, no terreno de uma política empírica, à margem das correntes renovadoras de seu tempo".

Esses trechos mostram claramente que o "Manifesto" era ao mesmo tempo uma denúncia, a formulação de uma política educacional e a exigência de um "plano científico" para executá-la, livrando a ação educativa do empirismo e da descontinuidade. O documento teve grande repercussão e motivou uma campanha que repercutiu na Assembleia Constituinte de 1934, que "... acolheu a ideia de um plano nacional de educação, a ser fixado pela União, atribuiu aos Estados e ao Distrito Federal a competência para organizar e manter sistemas educativos nos territórios respectivos, respeitadas as diretrizes estabelecidas pela União, estabeleceu os montantes mínimos de recursos a serem aplicados pelo governo federal, pelos Estados e pelos municípios na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos e (...) atribuiu ao Conselho Nacional de Educação a tarefa de elaborar o plano nacional de educação e ordenou aos Estados e ao Distrito Federal que estabelecessem conselhos de educação e departamentos autónomos de administração do ensino".

Como se pode notar, os propósitos do "Manifesto" foram alcançados no que diz respeito à incorporação ao texto constitucional de 34 de suas mais importantes reivindicações. Aliás, como veremos, todas as constituições posteriores, com exceção da Carta de 37, incorporaram, implícita ou explicitamente, a ideia de um Plano Nacional de Educação.

1.2.2 A Primeira Tentativa de Plano Nacional de Educação

De acordo com a Constituição de 34, o Conselho Nacional de Educação elaborou e enviou, em maio de 37, à Presidência da República, um anteprojeto do Plano de Educação Nacional. Com a sobrevinda do Estado Novo, o anteprojeto nem chegou a ser discutido. Na verdade, não merecia melhor destino.

Ainda que a ideia de plano nacional de educação fosse fruto das posições do "Manifesto" e das campanhas que se seguiram, o Plano de 1937 era a mais completa negação das teses defendidas pelos educadores ligados àqueles movimentos. Excessivamente centralizador, o anteprojeto pretendia ordenar em minúcias irrealistas toda a educação nacional. Tudo ficava regulamentado no Plano, desde o ensino pré-primário ao ensino superior, passando pelo ensino de adultos e de profissional em todas as modalidades e níveis. Os currículos todos eram estabelecidos e até mesmo o número de provas, os critérios de avaliação, etc.

Contudo, para os objetivos deste trabalho, é importante chamar a atenção para os dois primeiros artigos dos 504 que compuseram o Plano de 1937:

          Art. 1o - O Plano Nacional de Educação, código da educação nacional, é o conjunto de princípios e normas adotados por esta lei para servirem de base à organização e funcionamento das instituições educativas, escolares e extra-escolares, mantidas no território nacional pelos poderes públicos ou por particulares.

          Art. 2o - Este Plano só poderá ser revisto após vigência de dez anos.

Nesses artigos, há três pontos que convém destacar porque eles revelam uma concepção de plano que persistiu, pelo menos em parte, em iniciativas e leis posteriores:

a. O Plano de educação identifica-se com as diretrizes da educação nacional.

b. O Plano deve ser fixado por lei.

c. O Plano só pode ser revisto após uma vigência prolongada.

O primeiro ponto foi abandonado pela Constituição de 1946, que nem mesmo se referiu ao plano de educação, mas estabeleceu a necessidade de fixação de diretrizes e bases da educação nacional. Essa fixação, em 1961, pela Lei no 4.024, incumbiu o Conselho Federal de Educação de elaborar o Plano de Educação para os recursos dos ensinos primário, médio e superior agrupados nos respectivos fundos nacionais. Houve aí uma importante modificação na ideia do Plano de 1937: diretrizes não são planos e, nessas condições, plano vem a ser simples esquema distributivo de recursos. Esse entendimento de plano prevaleceu em todos os planos nacionais posteriores.

A ideia de que o plano devia ser fixado por lei prosperou de certo modo e nunca mais foi inteiramente abandonada. O seu primeiro retorno ocorreu em 1967, quando o Ministério da Educação promoveu os Encontros Nacionais de Planejamento da Educação, cujo objetivo era discutir um anteprojeto de lei fixando o Plano Nacional de Educação.

Houve outras resistências, além da de São Paulo, e a iniciativa não teve seguimento. Porém, a Constituição Federal de 1988 retomou a ideia de que o Plano de Educação deve ser estabelecido por lei (art. 214) e a de São Paulo (1989) seguiu-lhe os passos (art. 241).

1.3 Diretrizes e Bases da Educação Nacional

Após o anteprojeto de plano de 1937, a ideia de um Plano Nacional de Educação permaneceu sem efeito até 1962, quando foi elaborado e efetivamente instituído o primeiro plano nacional governamental. Embora Lafer entenda que o governo Kubitschek empreendeu, pela primeira vez, um planejamento global de governo, com relação à educação não houve nada, nesse período, que correspondesse aos reclamos anteriores de um Plano Nacional de Educação. No Plano de Metas, a educação era a meta número 30 e, segundo R. Moreira, pode-se dizer "...que o setor de educação entrou no conjunto do Plano de Metas pressionado pela compreensão de que a falta de recursos humanos qualificados poderia ser um dos pontos de estrangulamento do desenvolvimento industrial previsto".

Mesmo que a Constituição de 1946 não tivesse feito referência expressa à formulação de um Plano Nacional de Educação, essa exigência acabou surgindo na Lei no 4.024 de 1961 (Diretrizes e Bases da Educação Nacional). A propósito desta lei, é interessante notar que o anteprojeto original, preparado por uma comissão especial, que teve como relator o professor Almeida Jr., um dos signatários do "Manifesto" de 1932, não fez menção a planos de educação. Mais ainda, na sua resposta ao Parecer Capanema, Almeida Jr. fez referência elogiosa ao fato de que na Constituinte de 46 tivesse sido abandonada a ideia de um plano nacional. Mas, embora não constasse do anteprojeto original, a exigência de um plano foi incluída no terceiro substitutivo da Comissão de Educação e Cultura, que afinal transformou-se na Lei no 4.024/61. Nesse ponto, convém observar que, com relação a vários aspectos, o substitutivo transformado em lei era muito menos interessante do que o anteprojeto original.

Atente-se, por exemplo, para a própria concepção do que deveria ser uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Segundo o Relatório Geral da Comissão que elaborou o anteprojeto: "Diretriz" é linha de orientação, norma de conduta, "Base" é a superfície de apoio, fundamento. Aquela indica a direção geral a seguir, não as minudências do caminho. Esta significa o alicerce do edifício, não o próprio edifício que sobre o alicerce está construído. Assim entendidos os termos, a Lei de Diretrizes e Bases conterá tão-só os preceitos genéricos e fundamentais".

Se essa concepção tivesse prevalecido, a LDB seria somente uma fixação de princípios gerais de educação brasileira. E, por serem gerais, esses princípios permitiriam a elaboração, em níveis estaduais, de políticas de educação também de "rumos gerais" e, por isso mesmo, capazes de se afeiçoarem às características de cada estado sem deixar de integrar-se numa política nacional. Aliás, a obediência ao princípio federativo era o propósito da comissão relatora do anteprojeto, quando disse que "... o que fica claro é que a função de organizar o respectivo sistema de ensino cabe privativamente a cada Estado, e que a lei federal de Diretrizes e Bases, se interferir nessa matéria, violará a Constituição".

No quadro dessa concepção, que lamentavelmente não prevaleceu, as relações entre os conceitos de política educacional e de plano de educação seriam conciliáveis não apenas de um ponto de vista lógico, como também numa perspectiva de integração da ação governamental na área da educação.

Porém, se a LDB afinal aprovada (Lei no 4.024/61) distanciou-se muito da clareza e da sensatez do anteprojeto original, a lei que a sucedeu e substituiu em parte (Lei no 5.692/71) agravou sobremodo a situa-ção eliminando qualquer possibilidade de instituição de políticas e planos de educação como instrumentos efetivos de um desenvolvimento desejável da educação brasileira. A Lei no 5.692 aproximou-se muito, nas suas minudências regimentais, do natimorto Plano de Educação Nacional de 1937. Nada tem a ver com uma Lei de Diretrizes e Bases concebida em termos de princípios gerais e consagrou novamente a ideia de plano como distribuição de recursos.

1.4 Plano Nacional de Educação de 1962 e suas Revisões

Como já vimos, a exigência de um plano foi afinal incluída no texto da Lei no 4.024, mas, na fórmula aprovada, suprimiu-se o termo "nacional" porque ele "não se coadunaria, certamente, com as teses de descentralização e liberdade do ensino que acabaram por se impor, em larga medida, na referida lei". Contudo, o primeiro plano feito na sua vigência estabeleceu o adjetivo. Esse foi, de fato, o primeiro Plano Nacional de Educação, porque o de 1937 não ultrapassou a fase de anteprojeto. A comparação entre os dois é interessante porque exibe uma alteração conceitual importante. O Plano de 1937 pretendia ser uma ordenação legal da educação brasileira e não apenas uma operação distributiva dos recursos a serem aplicados à educação. Aliás, nele a distribuição de recursos ficava fora do que se chamou Plano de Educação Nacional e era atribuição do órgão que seria o Conselho Nacional de Educação.

O Plano de 1962, elaborado já na vigência da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, tinha outro caráter. Era basicamente um conjunto de metas quantitativas e qualitativas a serem alcançadas num prazo de oito anos. É claro que elas representavam opções políticas para os rumos da educação pública brasileira em todos os níveis, mas opções cujas coordenadas já estavam estabelecidas na LDB. No fundo, entre os Planos de 1937 e 1962, a diferença básica estava na própria concepção de plano, que, no primeiro, se traduzia numa ordenação até nos pormenores da educação brasileira, enquanto o segundo apenas estabelecia determinados critérios para os esforços articulados da União, dos estados e dos municípios na aplicação dos recursos destinados à educação.

O Plano de 1962 sofreu uma revisão em 1965. Esta revisão - a primeira feita após a Revolução de 1964 - teve um caráter fortemente descentralizador e incluiu normas tendentes a estimular a elaboração dos planos estaduais. Uma razão importante para a revisão de 1965 foi também a instituição em 1964 (Lei n° 4.440) do salário-educação, que aumentou substancialmente os recursos destinados ao Fundo Nacional do Ensino Primário. Em 1966, houve ainda uma nova revisão, que se chamou Plano Complementar de Educação, que introduziu importantes alterações na distribuição dos recursos federais, indicativas de uma mudança de rumos na política nacional: o restabelecimento de vultosos recursos para a educação de analfabetos com mais de 10 anos e a instituição de ginásios orientados para o trabalho.

1.5 Planos de Educação Posteriores

Após a iniciativa pioneira de 1962 e suas revisões, sucedem-se, em trinta anos, cerca de dez planos. Num exaustivo estudo do que foi feito nessa área até 1989, Roberto Moreira conclui que essa sucessão de planos elaborados, parcialmente executados, revistos e abandonados reflete não apenas os males gerais da administração pública brasileira, como também o fato de que na educação, pela razão de ela nunca ter sido realmente prioritária para os governos, as coordenadas da ação governamental no setor ficavam bloqueadas ou dificultadas pela falta de uma integração ministerial.

Em consequência disso e de outras razões, sobretudo políticas, o panorama da experiência brasileira de planejamento educacional é, na opinião de Moreira e de outros autores, um quadro claro de descontinuidade administrativa, que, no fundo, fez dessa experiência um conjunto fragmentário e algumas vezes incoerente de iniciativas governamentais que nunca foram mais do que esquemas distributivos de recursos. É claro que distribuição de recursos pressupõe opções e, portanto, de certo modo, uma política de educação. Mas não no sentido das aspirações do "Manifesto dos Pioneiros", isto é, de estabelecimento claro de princípios e rumos da educação nacional. 

1.6 A Crença numa "Ciência" do Planejamento

Essa crença se funda na ideia de que o desenvolvimento da ciência é um simples resultado da aplicação na investigação de métodos adequados. Todavia, hoje, historiadores e filósofos da ciência vêem com extrema cautela e até desconfiança a afirmação de que o desenvolvimento da ciência seja simples efeito da aplicação de métodos gerais identificáveis, codificáveis e por isso mesmo transmissíveis. É claro que há muitos métodos para fazer muitas coisas em ciência, mas os avanços significativos da ciência ocorreram, sobretudo pela produção de novas teorias e seu livre exame pelas comunidades científicas. Não há, porém, métodos para inventar teorias interessantes: o caldo de cultura onde elas surgem é antes o saber substantivo disponível num certo momento e a permanente discussão deste saber do que o emprego mecânico de rotinas metodológicas. Histórica e filosoficamente, é falsa a ideia de que há um conjunto de procedimentos de aplicação universal (método científico) e que o desenvolvimento da ciência é fruto da sua aplicação sistemática.

O significado do termo "planejamento" é muito ambíguo, mas no seu uso trivial ele compreende a ideia de que, sem um mínimo de conhecimento das condições existentes numa determinada situação e sem um esforço de previsão das alterações possíveis dessa situação, nenhuma ação de mudança será eficaz e eficiente ainda que haja clareza a respeito dos objetivos dessa ação. Nesse sentido trivial, qualquer indivíduo razoavelmente equilibrado é um planejador. Mas, quando pressupomos que haja uma "ciência do planejamento", então, de certo modo, os reparos que fizemos à ideia que se tem de uma metodologia científica de aplicação universal, valem também para o campo do planejamento. Não há uma ciência do planejamento e nem mesmo métodos de planejamento gerais e abstratos que possam ser aplicados à variedade de situações sociais independentemente de considerações de natureza política, histórica, cultural, económica, etc. É claro que para situações específicas, há uma ampla variedade de técnicas de planejamento que podem ser eficazes e eficientes, do mesmo modo que há tecnologias científicas para algumas parcelas do trabalho científico. Mas entre isso e a admissão de que há um saber geral sobre planejamento e que o domínio desse saber torna indivíduos aptos a "planejar em geral" há uma grande distância.

1.7 A Autonomia do Conceito de Plano de Educação

Ao longo desta exposição, ainda não fizemos uma tentativa maior de clarificação dos significados de termos como política de educação e plano de educação. Mas nas rápidas descrições já feitas, percebe-se que houve uma variação conceituai deles desde o "Manifesto". Neste preconizava-se uma política de educação para os diversos níveis de ensino e um planejamento científico que conduzisse a educação brasileira nos rumos assinalados.

No Plano de 1937, essa concepção se alterou e a ideia de plano compreendeu uma política de educação que se traduzia numa ordenação legal de toda a educação brasileira.

A comissão que preparou o anteprojeto da primeira Lei de Diretrizes e Bases nem mesmo se referiu a planos e a preocupação foi a indicação de rumos para a educação, isto é, a fixação de uma política geral de educação. Na discussão do anteprojeto, a ideia de plano se introduziu, mas a própria lei não tratou maiormente do assunto e deixou a sua elaboração para o Conselho Federal de Educação.

O primeiro plano - o de 1962 - e suas revisões foram planos de metas distributivas de recursos coerentes com os rumos estabelecidos na Lei no 4.024. Nos demais planos que se sucederam permaneceu essa característica do plano como esforço distributivo de recursos e, vez por outra, este esforço vinculou-se a estímulos para uma alteração de rumos em alguns aspectos da política educacional de certo modo implicada pelos dispositivos da LDB vigente.

Com a promulgação de uma nova Lei de Diretrizes e Bases em 1971, houve alterações radicais na política educacional. As mais profundas foram a fusão dos antigos ensinos primário e ginasial num curso único de oito anos e a reorganização de todo o ensino de 2o grau (antigo colegial) para dar-lhe feição terminal profissionalizante. Não é aqui oportuno avaliar essas mudanças de rumo da política educacional, mas apenas assinalar que os planos de educação subsequentes se ajustaram em maior ou menor grau a essas mudanças.

O ponto a que queremos chegar é o seguinte: em todas as experiências brasileiras de planejamento, os planos, bem ou mal, ligavam-se à política de educação expressa ou pressuposta nos textos das Leis de Diretrizes e Bases. Nas atuais Constituições federal e estadual, a obrigatoriedade do plano - a ser instituído por lei - ganha uma autonomia que sugere uma nova alteração conceituai do termo. A Constituição federal faz referência a alguns rumos gerais da ação pública em educação e a estadual diz que na elaboração do plano devem ser "considerados diagnósticos e necessidades apontados nos Planos Municipais de Educação".

Contudo, essas vagas referências não chegam a se constituir numa indicação clara da política de educação a que esses planos devem servir. A propósito, convém lembrar que, já em 1968, dizíamos que "O estabelecimento de um plano de educação implica, preliminarmente, a definição de uma política educacional (...) Nesses termos, um plano de educação se define como um conjunto de medidas de natureza técnica, administrativa e financeira - a serem executadas num certo prazo - e selecionadas e escalonadas a partir de uma política educacional. Esse conceito de plano tem a sua principal vantagem no fato de pôr em relevo o que é realmente imprescindível: a definição de uma política educacional.".

Essa manifestação foi feita a propósito do esforço que estava sendo desenvolvido, à época, pelo Ministério da Educação para fixar, por lei, um novo plano de educação. Iniciativas nesse sentido pressupõem a autonomia da ideia de plano com relação à ideia de política educacional. Tal pressuposição é falsa e essa falsidade é expressão da crença de que há uma ciência do planejamento e que por isso a boa condução dos negócios públicos deve se fundar na sua aplicação.

Nessas condições, a maneira pela qual o assunto foi tratado nas Constituições federal e estadual sugere uma aceitação ingénua de autonomia do conceito de plano que pode gerar confusões antes do que favorecer uma racionalização de esforços, que é o propósito básico de todo o planejamento.

1.8 A Eliminação de Obstáculos ao Planejamento

Como já vimos, a descontinuidade administrativa tem sido apontada como a causa principal do malogro parcial ou total de planos de educação no Brasil. Já o "Manifesto" denunciava o caráter fragmentário da ação governamental, atribuindo-o à inexistência de planos. Mas é claro que a simples existência de planos, por si só, não assegura a continuidade da ação governamental, que fica na dependência de condições de estabilidade política e administrativa. Ora, às vezes, nem no âmbito de um mesmo governo é possível reunir essas condições de estabilidade.

Em 1962, em trabalho apresentado numa Conferência Internacional das Nações Unidas, na Suíça, Jayme Abreu, numa comunicação sobre os obstáculos ao planejamento educacional, apontou, dentre outros, os seguintes: "... dificuldades resultantes de instabilidade política" e "... dificuldades da parte dos staffs administrativos tradicionais e da opinião pública".

É interessante observar que, nesse trabalho, as afirmações de Abreu não se fundavam na experiência brasileira de planejamento educacional (o primeiro plano estava sendo proposto), mas deviam refletir alegações que vinham sendo repetidas em encontros internacionais de especialistas em planejamento. Numa outra reunião internacional, Gabriel Betancur Mejia disse que "... uma das causas que mais influem na lentidão do avanço educativo é a instabilidade pessoal, dos planos e dos programas".

De outra parte, não devemos simplificar excessivamente as coisas e considerar, invariavelmente, a descontinuidade administrativa como um mal a ser eliminado. Eventualmente, o prejuízo maior poderia estar na continuidade. Além disso, é necessário lembrar que o anseio de racionalidade, que motiva as tentativas de supressão da descontinuidade e de outros obstáculos ao planejamento, pode ter o seu preço no estabelecimento de restrições a mecanismos ou condições essenciais da própria vida democrática. A instabilidade da hegemonia dos agrupamentos políticos é uma dessas condições essenciais e a descontinuidade da ação administrativa pode ser, muitas vezes, simples decorrência inevitável das vicissitudes da prática da democracia. Nessas condições, a eliminação da descontinuidade pode ser não-desejável, porque implicaria restrições políticas indesejáveis. 

Aliás, F. Hayeck, já em 1944, fazia uma advertência nesse sentido, quando disse que "cresce a convicção de que, para se realizar um planejamento eficaz, a gestão económica deve ser afastada da área política e confiada a especalistas - funcionários permanentes ou organismos autónomos e independentes".

Ao fazer essa advertência, Hayeck tinha diante dos olhos a ascensão nazifascista como também opiniões de pensadores políticos de esquerda, como Harold Laski, que, alguns anos antes, dissera, a respeito da situação inglesa: "É sabido que o atual mecanismo parlamentar é bastante inadequado à aprovação de um volumoso corpo de leis complexas. O Governo, na verdade, basicamente admitiu isto ao implementar suas medidas económicas e tarifárias, não por meio de um debate pormenorizado na Câmara dos Comuns, mas por um sistema de delegação de função legislativa".

Chegamos assim a uma questão delicada, isto é, as crescentes exigências de um planejamento eficaz e eficiente podem ter um preço insuportável para uma vida social e política ordenada segundo valores mais altos.

1.9 Planos Gerais de Educação e Autonomia das Escolas

Como vimos no subitem anterior, eventualmente o êxito do planejamento pode ter como contrapartida alguma forma de restrição às condições da vida política democrática. Essa situação pode, num determinado momento, apresentar-se como um verdadeiro dilema, porque ou corremos riscos com relação ao sucesso do planejamento ou restringimos as discussões e decisões sobre o plano que se quer. Ora, um dilema, num sentido estritamente retórico, delineia-se quando a escolha de qualquer das alternativas tem efeitos desagradáveis.

É indiscutível que em muitas situações de planejamento, a eficácia e a eficiência de um plano são quase incompatíveis com uma ampla discussão e deliberação sobre o próprio. Também é indiscutível que para problemas desse tipo, quando eles surgem na esfera governamental, não há nenhuma solução geral.

Nessas condições, convém evitar que o problema apareça no campo da Administração Pública do Ensino. Talvez isso seja possível se houver uma clara distinção entre os diferentes níveis de atuação que são inerentes à administração de uma rede pública de escolas. Um plano de educação pública deverá levar em conta esse fato e ajustar-se a ele, distinguindo os níveis que devem permanecer vinculados a decisões centrais daqueles outros, de caráter propriamente pedagógico, que dizem respeito à própria vida da escola. Para este último caso, uma política de educação realmente democrática apenas poderá fixar diretrizes gerais, deixando tudo o mais, que é a vida das escolas, ser decidido por elas próprias, respeitada a orientação contida nas diretrizes. Quando o problema é posto nesses termos evita-se o dilema antes referido.

A autonomia das escolas tem seu fundamento na exigência ética de que a ação educativa não se reduza ao mero cumprimento de horários e de execução de tarefas determinadas por órgãos exteriores à instituição. A ação educativa, tanto na sua dimensão individual como coletiva, requer uma consciência clara dos objetivos educacionais e dos valores a eles ligados. Sem essa consciência não é possível definir responsabilidades num sentido ético e social. Analogias entre escolas e empresas poderão obscurecer esse aspecto fundamental da educação.

Eventualmente, escolas às quais se permita a autonomia de decisão e de ação poderão encontrar dificuldades para atingir níveis de desempenho exteriormente fixados. Isso não tem maior importância. Hipotéticos níveis de eficiência que seriam alcançáveis se houvesse uma orientação rígida e centralizada não podem justificar, da parte de órgãos centrais, tentativas de intervenção e de correção. Já dizia Bacon que a verdade brotará mais facilmente do erro do que da confusão. É preciso deixar que as escolas corrijam os seus próprios erros, quando for o caso, mas não convém que aqueles que educam fiquem confundidos e inseguros a respeito de suas intransferíveis responsabilidades na ação educativa.

Pode ser que a autonomia da escola seja - como disse R. King Hall - apenas uma "... ficção desejável, mas também é um objetivo da democracia - extremamente útil, altamente desejável e possivelmente essencial."