UNIDADE VII

1.  O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO - Jorge Barcellos

"Por tudo isto, Senhor Presidente, estou seguro de que o Plano Nacional de Educação, examinado e aprovado pelo Congresso Nacional e convertido em Lei ordinária, representa um passo importante não somente para a continuidade da atual politica educacional, como também para a adoção de novas medidas que se fazem necessárias" Paulo Renato de Souza

1.1 As origens do Plano Nacional de Educação - PNE

Em nove de janeiro de 2001, termina uma etapa importante da gestão das políticas educacionais do governo FHC: é publicada no Diário Oficial da União a Lei 10.172, que aprova o Plano Nacional de Educação. Nesta Unidade, desejamos acompanhar a história política que levou a constituição de duas propostas de PNE -a do governo e a da sociedade - e as contradições dos interesses envolvidos.

Lúcia Maria Wanderley Neves, em "Por que dois planos nacionais de educação? define plano nacional como o "resultado de um processo de planejamento educacional que, por sua vez, expressa o estágio da correlação de forças sociais gerais e, mais especificamente, do campo educacional, no processo de definição de políticas de educação". A definição é Nacional, desde o final de 1997. A vitória da proposta governamental está relacionado aos processos políticos na tramitação da LDB e da política educacional na área construída pelo governo FHC nesses anos. Propostas divergentes para a educação para os próximos dez anos estiveram em debate e, do ponto de vista desta Unidade, cabe questionar as diferenças entre uma e outra proposta, nos termos das metas de gestão democrática, expansão do ensino e melhoria da qualidade.

O Plano Nacional da Educação em vigor é uma proposta vencedora que tem duração de 10 anos. Em seu artigo 2o.impõe o prazo de dois anos para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios para elaborarem seus planos decenais correspondentes. A lei determina seu acompanhamento pelo Poder Legislativo, através das Comissões de Educação, Cultura e Desportos da Câmara dos Deputados e da Comissão de Educação do Senado Federal.Não é no entanto, o primeiro Plano de Educação que conheceu o país.

Demerval Saviani remonta a ideia de Plano Nacional de Educação às iniciativas da década de 1930 contida nos "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova", onde já aparecia a ideia de "sistema educacional", isto é, a organização lógica, coerente e eficaz do conjunto das atividades educativas levadas a efeito numa sociedade determinada ou, mais especificamente, num determinado país". Como nas demais políticas sociais, trata-se da aplicação da racionalidade científica no campo da educação, reforçada pela Constituição Brasileira de 1934 e cuja responsabilidade de sua elaboração caberia ao Conselho Nacional de Educação. Criado em 1931, reorganizado em 1937 sob a orientação do Ministro Gustavo Capanema para elaborar o Plano Nacional de Educação, chamado "Código da Educação Nacional", o Conselho Nacional de Educação sofreu com a ação do Estado Novo que encerra a pretensão do governo em criar um Plano Nacional. Para Dermeval Savianni:

"enquanto para os educadores alinhados com o movimento de introdução da racionalidade cientifica na Politica Educacional, para Getúlio Vargas e Gustavo Capanema o Plano se convertia em instrumento destinado a revestir de racionalidade o controle políltico-ideológico exercido através da política educacional".

A ambição de Capanema era redefinir o arcabouço da educação nacional através da promulgação de uma lei geral de ensino - um Código de Educação Nacional - que construísse a base da ação de governo no âmbito educacional. Isto envolveria promulgar um Código Nacional de Educação, Leis Orgânicas do Ensino (Municípios), e estratégias de orientação e controle das atividades de ensino, nas instituições particulares e públicas. Entretanto, nenhuma das reformulações legais foi implementada. No período que se seguiu, entre 1946 e 1964, a contradição de base do processo educativo centrou-se entre 

"as forças que se aglutinaram sob a bandeira do nacionalismo desenvolvimentista que atribuíam ao Estado a tarefa de planejar o desenvolvimento do pais Hbertando-o da dependência externa, e aquelas que defendiam a iniciativa privada se contrapondo a ingerência do Estado na economia e aquilo que taxavam de monopólio estatal do ensino"

Santiago Dantas era o porta-voz da primeira tendência na Câmara dos Deputados, defendendo no debate que se travou por ocasião da primeira LDB a necessidade de criar um sistema de ensino voltado para as necessidades nacionais. Entreanto, ao longo dos debates, prevaleceu a tendência privatisa, que defendia a liberdade de ensino e o direito da família de escolher a educação dos filhos e não a obrigação do estado em oferecer educação nacional "nossa primeira LDB ficou reduzida a instrumento de distribuição de recursos para diferentes níveis de ensino. De fato, pretendia-se que o plano garantisse acesso das escolas particulares, em especial, as católicas, aos recursos públicos destinados a educação", assinala Dermerval Savianni.

A primeira referência a ideia de Plano Nacional no contexto do autoritarismo aparece na primeira LDB, em seu art. 92, que determina que o Conselho Federal de Educação elabore o Plano de Educação referente a cada fundo de financiamento de ensino. "Nesse caso o conceito de "Plano" já assume o significado estrito de forma de aplicação de determinado montante de recursos financeiros, assinala Saviani. Para o autor, é importante acompanhar que o planejamento educacional ao poucos será transferido dos educadores para os tecnocratas e será feita uma reavaliação estratégica do Ministério da Educação na organização dos poderes, e que passa a ser subordinado ao Ministério do Planejamento. Ora, como se sabe, este ministério não é rico em educadores, e sim em economistas para os quais, nem sempre os objetivos da educação são considerados prioritários em termos de planejamento global. Esta tendência é clara na Lei 5.692/71, ao definir em seu artigo 53 que "O planejamento setorial da educação deverá atender as diretrizes e normas do plano-geral do governo, de modo que a programação dos órgãos da educação superior do Ministério da Educação e Cultura se integre harmonicamente nesse plano geral"

No campo da educação, os planos correspondentes aos Planos Nacionais de Desenvolvimento denominavam-se Planos Setoriais de Educação e Cultura. Ora o plano é o instrumento para introduzir a racionalidade cientifica na educação, ora é um instrumento da racionalidade tecnocrática. Com a nova República, elaborou-se o Plano Educação Para Todos, projeto que o Governo Tancredo Neves pretendia por em ação. Substituído pelo / Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República (1986-1989), terminou por repassar aos estados recursos de forma clientelista. Para Acácia Kunzer

"Passou-se desta forma, de uma estratégia de formulação de politicas, planejamento e gestão tecnocrática, concentrada no topo da pirâmide no governo autoritário, para o pôb oposto, da fragmentação e descontrolejustificado pela descentralização, mais imposto e mantido por mecanismos autoritários"

A entrada na década de 1990 é marcada pela elaboração pelo MEC do Plano Decenal de Educação para Todos. Elaborado em 1993 destinou-se a diagnosticar a situação do ensino fundamental no Brasil e delinear estratégias para "universalização da Educação fundamental e erradicação do analfabetismo". O documento tomou como base a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, proclamada na reunião de março de 1990 na Tailândia. Como outros projetos do governo, ao longo do tempo, não saiu do papeLA apresentação de dois planos ao Congresso Nacional, um do governo e outro da sociedade civil, evidenciou o acirramento do conflito entre duas propostas de educação - a proposta liberal corporativa e a proposta democrática de massas. Assinala Neves

"Esses embates sucessivos, quer no âmbito da tramitação no Congresso da nova LDB, quer na definição da política educacional na aparelhagem estatal e na sociedade civil neste final de século, podem ser divididos em dois momentos: um que vai da promulgação da Constituição de 1988 até a eleição do sociólogo Fernando Henrique Cardoso para a Presidência da República em 1994 e outro que vai da sua posse até o envio ao Congresso Nacional desses dois Planos"

De fato, a Constituição previa a necessidade de um plano Nacional de Educação que fosse plurianual e promovesse a articulação do ensino em todos os seus níveis. O projeto deveria possibilitar a articulação das três esferas de poder para a erradicação do analfabetismo, a universalização do atendimento escolar e melhoria da qualidade de ensino. Não era uma solução muito viável, por que deixava para um futuro impreciso a definição de um projeto global de educação. Durante a Constituinte, o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública construiu um projeto educacional e democrático de massas, que foi encaminhado pela primeira vez pelo Deputado Otávio Elísio (PMDB/MG), o projeto de lei 1258. Nesse projeto de diretrizes e bases, o deputado dizia em seu artigo 80, que seria privativo do Congresso Nacional a elaboração do PNE."A escolha do congresso procurava, certamente, garantirão processo da elaboração do PNE, ao menos, o mesmo nível de participação política conquistado pela sociedade no decorrer do processo constituinte, no momento em que este Congresso teve ampliada suas prerrogativas constitucionais"Ou seja, em suas origens, a proposta de um PNE na década de noventa estava ligada a ampla participação da sociedade, educadores e responsáveis pela gestão pública da educação, por meio da Câmara de Educação da Câmara Federal. De fato, á época, existia um amplo censo sobre o patamar mínimo de escolarização, reivindicação não apenas do campo liberal corporativo, como também do campo democrático de massas.

O fórum em defesa da escola pública, consolidado a partir do encaminhamento da LDB, mas também preocupado com os princípios a serem definidos para o PNE, foi assimilado pelo Fórum Nacional de Educação, criado como instancia obrigatória do Sistema Nacional de Educação para a formulação da política educacional. "O fórum seria promovido e coordenado, conjuntamente,, pelas Comissões de Educação do Congresso nacional, pelo Ministério da Educação e do Desporto, pelo Conselho Nacional de Educação, e integrado por representação de cinco membros especialmente eleitos para tal fim, pelo plenário das entidades especificamente Definidas."

Era um amplo fórum composto por colegiados normativos dos sistemas de ensino dos estados, entidades nacionais de secretários de educação, dirigentes municipais, reitores, universidades, professores de educação básica, sindicatos de professores, e trabalhadores em educação, além de representantes de várias áreas correlatas a educação. Compunham portanto, uma ampla base social e representação da sociedade no espaço público de definição das políticas de educação. Para Lúcia Neves, foi o momento que mais a sociedade constitui-se em um processo de ocidentalização, no qual ampliou-se a sociabilidade política na constituição de um momento consensual para o Estado - momento de ocidentalização do Estado, na concepção Gramsciana.

 

A reversão deste processo deu-se com a eleição de Fernando Collor de Melo, com o Projeto "Brasil Novo". Primeiro projeto neoliberal da redemocratização, procurou estimular a reorientação privatista da sociedade, de forma geral, e da educação, de forma particular. Trata-se de por um freio a participação democrática da sociedade na definição do seu projeto de educação. A respeito do caráter de Fernando Collor de Mello, assinala Mário Sergio Conti em Noticias do Planalto

u0 objetivo era ser conhecido pelos brasileiros. Conhecido com o jovem enérgico que não participava das jogadas dos jaquetões da política. Seu estandarte de auto-divulgação, fincado mais no solo da indignação moral que no da racionalidade politica, era o do combate ao servidores públicos com proventos faustosos. Prometia acabar com os salários robustecidos por manhas burocráticas. Acabar com o nepotismo que pendurava apaziguados de políticos na máquina do estado. Ele ia botar relógio de ponto e fazer todo mundo trabalhar. Fernando Collor de Mello foi eleito governador aos 37 anos por que construiria essa mensagem contra uma casta de privilegiados, os marajás. E porque soube propagá-la na campanha eleitoral e, antes dela, no jornal, nas rádios e na televisão de sua família".

Com sua eleição, e as medidas e estratégias que tomou nos anos iniciais de seu governo, colaborou na formação da base política na qual Itamar, e principalmente, Fernando Collor de Mello irão se apoiar: o prussianismo, governo forte em detrimento do parlamento, a tendência a provocar um desequilíbrio de poder em favor do Estado; a instalação de mecanismos transformistas, tentando obter cooperação e favores clientelistas para o governo e formas de populismo na qual o presidente tenta um vinculo entre o líder e a massa atomizada, sem os partidos. A herança será plenamente adotada por FHC: a adoção de mecanismos para aprovação junto ao poder legislativo de suas medidas, fará do governo Collor de Mello o grande professor dos governos neoliberais. Collor inicia, portanto, um processo de desmobilização dos trabalhadores em educação que terá efeitos terríveis com relação a definição do Plano nacional de Educação, de forma particular, como as políticas gerais de educação. O impeachment e o governo Itamar Franco foram apenas um intervalo neste processo."

"A política e o politico como expressão do conflito vão sumindo do universo de uma fatia considerável da população, aprisionada pela ideologia da via única para a solução dos problemas nacionais, a via upós-modenizante"das soluções neoliberais" 

Desmobilizando os trabalhadores de educação, empregando mecanismos de coerção e às vezes, obtenção do consenso dos profissionais a proposta neoliberal na agudização do confronto, duas propostas foram apresentadas ao Congresso no final de 1997. Esboça-se um novo quadro, no qual a gestão democrática de massas da educação cede espaço ao Conselho Nacional de Educação e ao Ministério da Educação, a articulação entre os sistemas de ensino da união, dos estados e dos municípios. O efeito é calculado: desmobilizar o fórum nacional e com ele, esvaziar um mecanismo popular de definição da política educacional. O PNE passa a ser elaborado pelo MEC em consonância com o CNE. Ao Congresso Nacional cabe apenas a aprovação da lei do Executivo. "No que diz respeito a limitação dos marcos da democracia política nos anos de 1990, tão grave quanto a exclusão de uma instancia autónoma e definidora de política educacional, foi a transferência da tomada das decisões do âmbito do Congresso para o Executivo Central", segundo Neves.

A função é rapidamente assimilada pelo governo FHC: o projeto de Darcy Ribeiro já inclui, entre suas prerrogativas, a determinação a União, Estados e municípios na elaboração do PNE, que deve ser feito em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, redirecionando as prioridades do PNE estabelecidas pela constituição, reforçada pela versão final da LDB. Ou seja, para Neves, "a redefinição de prioridades educacionais na direção dos objetivos dos organismos internacionais só se efetiva sistematicamente no governo FHC." De fato, o Plano Decenal de Educação para Todos do Governo Itamar Franco, representou um acordo entre as instancias 'dos trabalhadores em educação e o mercado. A ampla participação popular não significou o abandono da natureza neoliberal do plano, apenas o sucesso, num primeiro momento, do pacto social, concomitante a discussão da LDB. Não era um programa suficiente: sua pretensão era apenas com a educação básica, prioridade de Itamar Franco naquele momento. A respeito conclui Neves

"De fato, o Plano Decenal de Educação para todos não se constituiu em mais uma etapa da discussão que vinha se travando na sociedade brasileira desde meados dos anos 1980. Ele se consubstanciou, na verdade, no resultado de um acordo selado pelo Brasil em nível internacional, sob a orientação da ONU. Suas diretrizes fazem parte de uma estratégia global de educação com a finalidade de satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem dirigidas a nova fase de desenvolvimento mundial, dos povos dos países subdesenvolvidos, e principalmente, das populações que vivem em situação de pobreza e de pobreza extrema".

Lúcia Neves critica o apoio dado pela CUT e CNTE ao Plano Decenal por que revelam o desconhecimento da ideia subjacente de Pacto Social como estratégia de negociação, a prioridade da educação básica e a luta pela defesa de um piso salarial nacional para as categorias. O acordo foi selado durante a realização da Conferencia Nacional de Educação para Todos, em Brasília, em 1994 "portanto, a dois meses da sucessão presidencial, quando as pesquisas de opinião já definiam claramente a preferência do eleitorado em relação ao candidato continuista e sua proposta neoliberal de governo". No dia 15 de outubro de 1994, dia dos professores, é firmado o Pacto pela Valorização do Magistério e Qualidade de Educação, que fixou o piso salarial do magistério em R$ 300,00, a ser implementado gradualmente em todo o país, assinado no dia 19, pelo ministro da Educação Murilo Hingel.

Um ano após o Pacto, FHC firma em 2 de setembro de 1995, um novo acordo, que resulta no Manifesto pela Educação, que defende a criação de um fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério, e numa tacada, exclui a possibilidade de criação de um piso nacional unificado. A mudança nas regras agrava a desmobilização, como assinala Neves, e permite a FHC a redirecionar os objetivos para a constituição de um Plano Nacional de Educação. A estratégia é utilizar mecanismos autoritários para a gestão de iniciativas educacionais junto a iniciativa privada, e, garantir mecanismos de consentimento popular, através dos programas Comunidade Solidária e, recentemente, com Amigos da Escola, parceria com as Organizações Globo. A ideia de um projeto geral perde espaço para soluções tópicas para a educação do trabalhador, desvinculadas de uma política educacional abrangente quanto as condições de ensino da população, contribuindo para diluir o poder de mobilização do conjunto dos trabalhadores em educação. Fez parte desse processo, a submissão do novo Conselho Nacional de Educação as prerrogativas de FHC, através da lei 9.131, de 24 de novembro de 1995, quando perdeu toda sua autonomia e transformou-se "em órgão colaborador do Ministério da Educação na formulação e na avaliação da política nacional de educação", condição que lhe caberá na execução do novo PNE.

O estreitamento do espaço de negociação pelo PNE dá-se quando FHC desconsidera a discussão travada no Congresso Nacional sobre o PNE. O governo, ao conquistar a submissão do CNE, revela-se dotado de amplos poderes na definição da política educacional. A nova LDB faz o golpe de misericórdia, ao eliminar o Fórum Nacional de Educação, órgão de articulação da sociedade, transformando o MEC no único autor da PNE. Para Horta:

"O Plano Nacional de Educação previsto na LDB não se confunde com o Plano Nacional de Educação previsto na Constituição de 1988. A constituição prevê o estabelecimento de um plano de educação visando a articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, enquanto que o Plano de Educação previsto na LDB refere-se, sem duvida, a educação básica, como se pode deduzir da referencia a Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Nesta perspectiva, o Congresso Nacional continua com o dever constitucional de aprovar um Plano Nacional de Educação e, por conseguinte, com a competência legal de desencadear o processo de sua elaboração"

Enquanto que o MEC elabora sua proposta de Plano Nacional de Educação e encaminhou ao Congresso Nacional, incorporando contribuições do Plano Decenal de Educação, o Congresso Nacional acolheu uma proposta de Plano Nacional elaborada pela sociedade civil. É o ultimo suspiro contra a deslegitimação, por parte do governo, da proposta dos trabalhadores autónomos para o PNE. Mas o contexto é frágil para as organizações de trabalhadores em educação. O governo FHC conta com um consentimento maior da população em geral, e amplo espaço de divulgação de suas políticas nos meios de comunicação de massa.

A primeira diferença, aponta Neves, reside na forma de participação da sociedade civil. O governo consulta a sociedade civil , enquanto o da sociedade civil é referendado pelos participantes do II Congresso Nacional de Educação, que define coletivamente, diretrizes e metas da educação escolar. A segunda diferença está nos objetivos. O plano do governo é um "instrumento capaz de fortalecer e impulsionar as mudanças já desenhadas pelas atuais políticas educacionais. Na proposta do PNE da sociedade, esse plano se constitui em referencial de atuação política que tenha como pressupostos: Educação, Democracia e Qualidade." Para Neves, finalmente, a principal diferença está no fato de que no plano da sociedade, as entidades empresariais que só participaram efetivamente do plano do governo estiveram excluídas, cedendo espaço as organizações de trabalhadores em educação.

A proposta elaborada pela sociedade

A proposta da sociedade civil foi uma proposta vencida. Durante três anos, debateram-se no Congresso Nacional um projeto que representou ampla parcela da sociedade e que não pode ser esquecida. Em sua formulação participaram 13 prefeituras comandadas por partidos de esquerda, a Secretaria de Educação de Belo Horizonte, a UNDIME, entidades representativas dos trabalhadores em educação, os organismos construídos em defesa da escola pública, entidades estudantis, CUT, MST e Anped, organizando uma visão de mundo e de educação que encaminhous-e para o confronto no Congresso Nacional.

A proposta da sociedade diferenciava-se da proposta do governo em forma e conteúdo. Primeiro por que sua proposta de gestão democrática da educação prevê a participação autónoma dos diferentes órgãos de estado e das entidades da sociedade civil na definição e na implementação das políticas educacionais. Deseja participação paritária e autónoma da comunidade escolar e da sociedade organizada, reivindicando a revogação os instrumentos legais que impedem o funcionamento da organização democrática do sistema escolar, especialmente as leis que disciplina a escolha dos dirigentes universitários, a que cria o Conselho Nacional de Educação e a Portaria que dispõe sobre a escolha de dirigentes de escolas técnicas e profissionais. A revogação da nova LDB e do FUNDEF estavam entre suas reivindicações. Conforme Neves, o plano propugna:

a.            realizar eleições diretas e paritárias de dirigentes das unidades escolares e universitárias, com a participação de todos, de acordo com seu projeto político-pedagógico e administrativo, amplamente divulgado aos interessados;

b.           a criação do Fórum Nacional de Educação, de Fóruns Estaduais e Municipais com atribuições deliberativas, de acompanhamento e avaliação das políticas educacionais e de implementação do PNE, com a participação democrática de representantes da sociedade civil organizada e da sociedade política (com garantia de autonomia, orçamento e infra estrutura)

c.            realizar, a cada dois anos, eleições em níveis nacional estadual e municipal dos conselhos de educação, precedidas de conferencias, em cada um dos níveis.

d.          Criar, no prazo de três anos, os Conselhos Escolares deliberativos, como instrumentos de construção coletiva e democrática das propostas político-pedagogicas;

e.           Construir os Conselhos Paritários (trabalhadores, governos e empresários) para gestão das agencias de formação de profissionais

f.                  Garantir e incentivar as organizações estudantis nos níveis fundamental e médio da educação básica e a organização profissional e sindical, dos trabalhadores em educação, entre outras metas"

O PNE da sociedade também difere-se em relação a expansão da oferta escolar para a formação do trabalho da atual e próxima geração de trabalhadores nos níveis fundamental e médio. Como afirma Neves, "propugna a correção do desequilíbrio gerado por repetências sucessivas, entre os anos de permanência do aluno na escola e a duração do próximo nível de ensino". A proposta da sociedade deseja, de fato, a permanência do caráter integral do ensino médio, além de propor atingir 50% da faixa etária entre zero e três anos (educação infantil) e 100% na faixa de quatro a seis anos (pré-escolar). Propõe também para que cerca de 40% da população da faixa etária entre 18 e 24 anos seja atendida pelo sistema público do ensino superior. Os críticos apontam que uma contradição notável é propor para a educação profissional, ao mesmo tempo que abre para a discussão de um novo projeto, metas e diretrizes para a expansão e o redirecionamento da oferta de formação profissional e que as vezes, se confundem com a proposta governamental.

O projeto social do PNE democrático de massas tem por finalidade integrar o Brasil de forma soberana a nova ordem internacional do trabalho. Além disso, propõe a socialização da riqueza produzida e do saber coletivamente construído em práticas democráticas de massa. A educação é vista na produção coletiva do conhecimento que contribua para a qualificação social do pais, a construção de uma sociabilidade emancipatória, rejeitando toda a base da política educacional neoliberal."As propostas do PNE da sociedade para a escola em sua totalidade se dirigem, inversamente, para a formação de profissionais/cidadãos críticos e competentes que participem ativa e criativamente do mundo do trabalho e da construção coletiva de uma sociedade livre e justa" Sua preocupação é com a escolarização básica de zero a 18 anos de caráter integral para todos, em ações educacionais de caráter presencial. No entanto, não há uma rejeição a priori do mercado, por que o projeto da sociedade propõe uma compatibilização entre uma educação de qualidade e necessidade do trabalho. O projeto da sociedade não abre mão para isso, de garantir a formação dos profissionais da educação em universidades, de modo vinculado à pesquisa, extensão e ensino, rejeitando qualquer proposta de formação de centros universitários.

A proposta que buscava a construção de uma qualidade social construída de dentro para fora foi uma proposta vencida no interior do congresso nacional. A razão é a forma de intromissão do Executivo nos assuntos legislativos, a partir de sua base aliada. As características da proposta do governo, aprovada, são o objeto da próxima aula.

A divergência de interpretações entre os diferentes planos pode ser observada pelos argumentos de defesa e crítica. Na defesa realizada por Para Vidal Didonet, Assessor Especial da Comissão de Educação da Câmara Federal para o Plano Nacional de Educação, seu autor enumera seis características que marcam a relevância do plano. Elas são o que o distinguem de todos os outros planos já elaborados e podem ser sintetizados no que segue:

1.       aprovação pelo poder legislativo: Para Didonet, o fato de ser aprovado pelo Poder Legislativo (Câmara dos Deputados e Senado Federal) amplia seu grau de legitimidade social. Reconhece a bem da verdade que, "embora o produto final das propostas ali discutidas dependa da correlação de forças existentes nas duas Casas Legislativas, em que grupos hegemónicos logram aprovar o que desejam, a experiência tem demonstrado que a negociação possibilita avanços".

2.       cumpre um mandato constitucional legal: ainda que desde a Constituição de 1934 previsse o PNE, somente após 66 anos ele é cumprindo, atendendo os preceitos da Constituição Federal e LDB, que determinaram a aprovação do PNE por lei. Assim, o PNE aprovado pressupõe que a iniciativa deva ser fundado na iniciativa social, e não da criatividade dos políticos. Sob este aspecto, observar, adiante, argumento de Ivan Valente.

3.       vigência por uma década: Para Didonet, é importe o fato de que o PNE coloca o compromisso para uma década. A razão é o fato da descontinuidade dos projetos e programas nas sucessivos governos."Dez anos é um horizonte de tempo equilibrado para fixar metas e garantir resultados capazes de mudar um quadro educacional Isso não significa que no fim dos dez anos todos os problemas tenham sido resolvidos" assinala Didonet.

4.       abrangência dos níveis e modalidades de ensino e das áreas da administração educacional. Contra o tratamento da educação em segmentos estanques, como o feito durante décadas, seguindo a Constituição, o PNE determina a harmonização das políticas, no campo de'planejamento, na destinação de recursos e definição de prioridades. "Ter em um único documento a visão diagnostica da educação, do nascimento à pós-graduação, permite uma analise compreensiva da problemática educacional brasileira, das interelações entre os níveis de ensino".

5.       acompanhamento da execução do PNE pelo Poder Legislativo: como o artigo 49, X, em seus artigos 70 e 74 determina o papel fiscalizador da Câmara e do Senado, o PNE aplica a determinação a sua execução. O que significa um papel ativo para as Comissões de Educação do Senado e da Câmara Federal.

6.       Envolve a sociedade como um todo: para Didonet, o fato de que a educação é uma responsabilidade do estado e da sociedade, convém para dar liberdade a iniciativa privada, "respeitada certas condições". Prevê, portanto, "a participação e no acompanhamento e na avaliação, entre outras, das entidades da comunidade educacional".

A caracterização realiza Ivan Valente em "Para um balanço do PNE" é totalmente distinta. Professor, deputado federal pelo PT de são Paulo, encabeçou a apresentação do PL 4155/98, que apresentou o PNE da Sociedade Brasileira a Câmara dos Deputados. A posição de Valente é a da critica ao atual plano. Para ele, o Plano reduziu-se de uma tarefa de Estado às razões de governo, submisso as exigências do OMC, FMI e Banco Mundial. A proposta da sociedade havia sido elaborada coletivamente em II Congressos nacionais de Educação, entre 1996 e 1997, em Belo Horizonte, com cerca de cinco mil pessoas, cada um, de todo o país. Ele entrou em tramitação no dia 10 de fevereiro de 1998. No dia seguinte, o governo desengaveta seu projeto e apresenta-o ao plano, sendo anexado ao PNE em discussão.

"A proposta governamental foi elaborada à moda tecnocrática, com restrita audiência social e política, de modo a garantir o essencial da política do Banco Mundial, agência que, como foi anteriormente assinalado.v em dando a tónica do elenco de medidas implementadas, para todos os níveis em modalidades e ensino, nestes anos de predomínio no MEC da coligação (PSDB, PFL, PMDB e outras siglas), que sustenta o Executivo Federal*

Para Ivan Valente, o problema do projeto governamental era manter a política educacional caracterizada no centralismo exacerbado da esfera federal, que assume para si a formulação e gestão da política educacional e a política de empurrar para a sociedade, aquilo que deveria ser sua prerrogativa, a manutenção e desenvolvimento do ensino.

1.       Um dos problemas que o PNE da sociedade enfrentou é que o governo contava com ampla maioria na Câmara dos Deputados e no Senado. Foi então mobilizado a base governista na discussão do PNE, foi indicado Nelson Marchesan (PSDB/RS) que elaborou o substitutivo a proposta da sociedade. Segundo Valente, "tratou-se de abreviar a participação social no debate no Congresso, fazendo preponderar nas audiências públicas os convites para autoridades e técnicos vinculados a posições oficiais". Ao contrário da posição otimista de Didonet, Valente aponta uma serie de características do PNE que o identificam a proposta neoliberal em educação:

2.       o PNE é uma proposta Frankenstein: ela simula uma tentativa de diálogo entre o projeto produzido no interior do movimento social, no que se refere à extensa parte de diagnostico da situação da educação nacional, com a as metas impostas pela política neoliberal de FHC.

3.       detalhismo nas prerrogativas governamentais e generalismo ambíguo nas medidas de interesse social: para Valente, o governo é preciso na centralização da política, como salienta na meta 8, onde prevê prazos para formulação de projetos pedagógicos embasados nas diretrizes e nos parâmetros curriculares nacionais. Ao mesmo tempo, não define prazos na meta 20, que prevê a eliminação dos dois turnos diurnos das escolas.

4.       retrocesso frente à Constituição Federal: na adoção dos comandos dos objetivos gerais do PNE, onde não faz referência a erradicação do analfabetismo e universalização do atendimento escola, previstas na Constituição, que ou não são referidas, ou passam a ser tomadas como "elevação geral do nível de escolaridade" tornando, como assinala o autor, "opaco o conteúdo do comando institucional".

5.       adoção da estratégia de ajuste estrutural imposto pelo FMI: utilizando o argumento o MEC e dos representantes do Banco Mundial de que "o Brasil não gasta pouco em educação, ele gasta mal", o projeto trabalha com a lógica de contenção ou corte dos gastos públicos na prestação dos serviços educacionais. Esmagador número de vetos do presidente foi, justamente, na questão dos recursos financeiros.

6.       Toma a política realizada pelo MEC como PNE: o substitutivo Marchezan, apresentado e aprovado pelo Congresso, substitui ardilosamente a instauração de um Sistema nacional de Educação por um Sistema Nacional de Avaliação, este sim, com instrumento central da política nacional de educação.

7.       Rejeita as teses centrais da proposta do PNE -Sociedade: este reivindica escola pública, gratuita, democrática, de qualidade para todos. Para Valente, esta proposta requeria "(a) aumentos substanciosos do gasto público; b) universalizar a educação básica e ampliar e democratizar o ensino superior publico; c) implementar um Sistema Nacional de Educação; d) gestão efetivamente democrática da educação

O PNE aprovado, portanto, possui características legais que o fazem um instrumento de políticas públicas, e ideológicas, que o fazem um instrumento de execução - por falta ou omissão - das políticas do FMI e do Banco Mundial.

Do ponto de vista da Educação Infantil, o Estado e a União com a manutenção do ensino fundamental, já que é, a rigor, obrigação municipal, ainda que o Art 211, parágrafo 1o, e em especial, o art 30, inciso VI ordenam a política de cooperação "técnica e "financeira"" com os municípios. Para Valente, isto se confirma quando o PNE "reconhece, de modo indireto, o impacto sucateador do FUNDEF sobre esta fase da educação básica, ao constatar uma redução de 200 mil matriculas, na chamada educação pré-escolar". O PNE deixa de enumerar metas para apontar intenções , sem enumerar competências, meios , prazos e responsáveis pela execução dos comandos aprovados.

Quanto à educação básica, o PNE afirma a política atual do MEC. Sua tónica é, segundo Valente, "a centralização da gestão da educação e obstaculização das possibilidades de exercício da autonomia das escolas". O exemplo disso é a atuação de Paulo Renato de Souza com relação ao Bolsa Escola. O referido programa, exemplo de atuação no campo do ensino fundamental, oferecendo míseros Rr$ 15, 00, é totalmente capitalizado como batalha no processo de disputa do candidato a Presidência, passando a largo da discussão de ampliar o volume de recursos.

O ensino médio também é vitima da tensão da centralização e proposta de gestão não democrática. Sorrateiramente estimula a privatização disfarçada do ensino público, como na meta 13 "criar mecanismos, como conselhos ou equivalentes, para incentivar a participação da comunidade na gestão, manutenção e melhoria das condições de funcionamento da escola", que pode incluir desde iniciativas como "amigos da escola", a propriamente, sua privatização.O PNE enuncia, mas não tem como assegurar universalização do atendimento do ensino em todos os níveis.

O ensino superior foi à seção que mais recebeu vetos diretos do presidente, o que transforma o projeto de "metas" em lista de intenções. A política em curso é intervir diretamente nas universidades, como o que ocorreu no Caso da UFRJ, e assumir uma política de privatização no ensino superior. São estabelecidas umas séries de medidas sem a correspondente indicação de meios que fazem ser "letra morta" as políticas para o nível superior, tanto no que se refere à oferta deste nível de ensino (meta 1), a formação de profissionais (meta 16). Restam, portanto, apenas os dispositivos constitucionais aprovados que substituem os vetos e significam a legitimação da política atual do MEC: "cursos sequenciais, sistema interativo de educação à distância, o "provão"

como ponta-de-lança da avaliação institucional, instituição de diferentes níveis de "autonomia"para as chamadas instituições não universitárias - os "Centros Universitários", por exemplo, etc".

Valente analisa ainda outras modalidades de ensino como educação de jovens e adultos, educação tecnológica e formação profissional, além da educação especial. Talvez o argumento central de sua análise esteja mais adiante, na seção em que analisa o que FHC veta e que faria do PNE um plano.

De fato, a mensagem no. 9, de 9/1/2001, que comunica os vetos ao parlamento, assinalam que foram determinadas pela área económica do governo, através do Ministério do Planejamento e da Fazenda, e não do Ministério da Educação. É uma outra forma de dizer que seguiram as impões do FMI e do Banco Mundial, que subordina, de imediato, a política educacional (e também as políticas sociais, como vimos), a política económica do governo. Não há nenhuma justificativa pedagógica nos vetos.

São vetados, sucessivamente, a ampliação do Programa de Renda Mínima, quatros questões relativas ao nível superior, magistério de educação básica, e Financiamento da Educação. O ensino superior teve vetado as metas que dispunham de ampliação de vagas, da criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Superior, a ampliação do crédito educativo e do financiamento da pesquisa. Foi vetada a meta que definia a implantação de planos de carreira e novos níveis de remuneração para profissionais de educação básica e finalmente, foram vetados metas de financiamento: aumento do PIB investido em educação, aumento dos valores mínimos por aluno e a polémica questão da exclusão do pagamento de aposentados e pensionistas do ensino, que seriam pagãos com recursos do Tesouro Nacional. Como assinala Valente, FHC "vetou tudo o que o aproximava de um plano".

A argumentação de base dos vetos é a submissão a Lei de Responsabilidade Fiscal. Como se sabe, ela estabelece como primeiro objetivo da administração pública a contensão de gastos para pagar a dívida. Ela proíbe os governantes de planejarem seu futuro, já que planos para dez anos (como o PNE) devem se submeter a as Leis de Diretrizes Orçamentárias, e Plano Plurianual de Investimentos de duração de até quatro anos. Como assinala Valente, "é uma lei feita para criminalizar governantes que contrariem os interesses do capital financeiro(...) fiel aos cânones do neoliberalismo, [que] não admite outros planos que não sejam aqueles elaborados pelas grandes corporações e grupos económicos, tratados como "mercado".

A comparação, portanto, do PNE atualmente em vigor, com o PNE vencido, o da sociedade brasileira, "e importante para revelar o espírito do legislador, o lugar da questão educacional nas políticas de governo. Ela não contempla, apesar de seus méritos, reivindicações de setores sociais. "É uma espécie de" salvo conduto para que o governo continue implementando a política que já vinha praticando".