UNIDADE VIII

1.   FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO - O problema da corrupção.

Eu estaria disposto a tentar entender a economia se me convencessem de que alguém entende. Luis Fernando Veríssimo

1.1 O banco mundial e o financiamento da educação no Brasil

Lauglo aponta que o Relatório sobre políticas do Banco Mundial para o ano de 1995, intitulado "Prioridades e Estratégias para a Educação", revela que, a par uma série de elevados objetivos contidos no documento, como a defesa da educação como um direito e meio para melhorar as condições de vida, para o autor, a inclusão da expressão "orientação ao cliente" é expressão chave. Para o autor, "todo o processo tenderá para o tipo de abordagem e para as prioridades que o banco quer que prevaleçam (...) a estratégias é induzi-lo a desenvolver os projetos na direção que o banco, em sua sabedoria, estabeleceu". Entre as prerrogativas do banco, estão a educação básica fornecidas para escolas de ensino básico, onde devem ser destacadas disciplinas como matemática, ciências e habilidades em comunicação. Para o Banco Mundial, a privatização é um complemento, que deve financiar a educação profissional e o treinamento. Para o nível superior, a privatização é a regra, a fim de assegurar, "em todas as regiões", a sustentação fiscal da educação superior.

É o Banco Mundial que impõe a política de monitoramento de insumos e resultados da educação, buscando o cumprimento de "Padrões e rendimento" e "resultados" na educação. O autor aponta que, no mesmo documento, "a educação básica deve ser fornecida gratuitamente, mas a educação secundária e a educação superior devem ser sujeitas ao pagamento de taxas. Se as taxas da educação superior são conservadas baixas, há possibilidade do estabelecimento de um i posto de educação para graduados", diz o autor. A política do banco mundial para educação e clara: paulatinamente incluir a educação paga, através de esquemas de empréstimos aos beneficiados.

De fato, a justificativa do banco para exigir políticas para a educação nos diversos países do terceiro mundo, está no fato de que sua participação como fonte de recursos elevou-se na última década. Participando do financiamento de 2,2% dos gastos mundiais de educação, o Banco subiu sua participação de 10%, em 1980, para 27% e em 1990 correspondeu a 62% do financiamento total concedido por todas as agencias multilaterais de educação. Os países dependem do suporte que o banco dá para os gastos de educação e por essa razão, é muito influente junto a governantes e outros financiadores.

1.2 O perfil atual do financiamento da educação no Brasil

A principal fonte do financiamento da educação no Brasil dada pela Constituição Federal de 1988 é a receita de impostos. No artigo 212, a redação é clara: "A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, 25% - vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento de ensino". Cada nível de governo deve deduzir aquela parcela da receita que transfere para outro nível e acrescer aquela que recebe.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional assinala em seu art. 69 que os índices mínimos são aqueles assinalados pelas respectivas Leis orgânicas dos Estados ou municípios, ou seja, possibilita a ampliação do percentual mínimo para a Educação. Poderão se contabilizados para efeito de cumprimento dos índices constitucionais os recursos públicos destinados a escolas privadas, comunitárias, confessionais ou filantrópicas, desde que comprovadamente não lucrativas e que apliquem seus excedentes em educação. Elas ficam obrigadas a prestar contas ao poder público, e não podem distribuir resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcela de seu patrimônio sob nenhuma forma. Como a LDB entende de forma ampla o que seja escola comunitária - aquela entidade que tem na direção representantes da comunidade - confessionais, que além de representantes da comunidade, professam ideologia religiosa, e filantrópicas, as definidas por lei, na verdade adotou conceitos amplos que permitirem diversas instituições pleitearem verbas públicas. Não pouco comum a existências de instituições privadas que colocam de forma inócua, representantes da comunidade, já que a lei não define seu peso na participação nem sua forma de escolha.

Pelo Artigo 213 da Constituição, ainda há mais duas possibilidades de uso de recursos vinculados a educação, em atividades universitárias de pesquisa e extensão e nos gastos com bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, para aqueles que demonstrem insuficiência de recursos, desde que haja vagas nos cursos

 

1.3 A corrupção na educação: o caso do FUNDEF, 1999

Cresce no meio educacional a tendência a considerar a insuficiência de atendimento do estado na educação um problema devido a corrupção. O efeito das políticas educacionais em nosso país passaria pela corrupção na aplicação dos recursos. O esquema de corrupção consiste em emitir notas fiscais frias para justificar gastos, permite que o dinheiro dos contribuintes, repassado pela União aos municípios, financie campanhas eleitorais ou acabe sendo embolsado pelo administrador, por exemplo.A fraude cresceu nos últimos anos com a municipalização dos serviços de saúde e educação, cujas verbas são os principais alvos de administrações corruptas

Ao longo de 1999, essa tese foi amplamente divulgada. Responsabiliza-se o Ministério da Educação por tudo de corrupção no meio educacional. No entanto, a tese a ser defendida - e comum aos estudiosos do tema - é que de que não há corrupção sem uma cultura da corrupção, que prospera por que em vários níveis, todos aceitam e consideram legítimo estar a margem da lei. A corrupção tem raízes profundas na sociedade brasileira: surpreende que revele raízes no campo educacional tão tarde. E também - tese também a ser defendida - pior do que a mal versação dos recursos, é o prejuízo ético moral para a sociedade que tais práticas representam.

Na medida em que os instrumentos legais, principalmente os que criam a ideia de sistema educacional no país e articulam todos os níveis de poder, deixam margem à corrupção, vemos que ela corrói todas as relações sociais. Não apenas estruturas de poder local, mas também as relações sociais imediatas. É preciso revelar portanto que nos dediquemos a estudar a cadeia de corrupção na área de educação. Como aponta Renato Janine Ribeiro, "é pensar a res pública como fruto da ação coletiva e não como o resultado de uma autoridade ante a qual os cidadãos se reduziriam a meros súditos passivos"

Neste estudo procuramos acompanhar a evolução dos acontecimentos do caso do FUNDEF. As fontes de pesquisa são as diversas reportagens Do Jornal Folha de São Paulo, publicadas no ano de 1999 onde acompanhamos a crise gerada no interior do Ministério da Educação devido ao desvio das verbas do Fundo e seus efeitos nas políticas educacionais. O tema foi escolhido por que permite explorar o grau de responsabilidade das diversas instâncias na construção da corrupção em prática no campo educacional. Este estudo reconstrói a história dos esquemas de corrupção que vieram a tona em 1999 e que envolveram governo, estados e municípios. Sua principal constatação é a dificuldade do ministério público em encontrar, identificar e punir os responsáveis pela corrupção. A pergunta central é: estaria o Fundef colaborando na formação de uma nova estrutura educacional corrupta?

Sustento que para conhecermos o campo das políticas educacionais recentes, os educadores, ou os professores da respectiva disciplina, devem conhecer o fenómeno da corrupção. Alias, um tema tão importante quanto o do Plano Nacional de Educação, ou a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, presentes no programa da disciplina de Políticas Educacionais da Unisinos, deveria ser o da Corrupção em Educação. Um simples levantamento das notícias de jornal, como a que fazemos neste estudo, nos mostra que a corrupção é a questão de política educacional por excelência, discuti-la deveria ser tema de nossas aulas por que somente desta forma, abandonaríamos a visão que apenas a critica e constata de forma episódica, para enfrentar conceitualmente o problema que engata a Ética e a Política no campo educacional. Nosso sistema educacional está adotando costumes corruptos e isso, por definição, é uma questão política, que exige que pensemos a Política Educacional no campo do afeto e não apenas razão.

Para Renato Janine Ribeiro, a possibilidade da corrupção está na própria ideia de Estado. Retomando Montesquieu, Ribeiro aponta que na fundação da ideia de natureza da república, manteve-se a ideia monárquica de que um erro moral pode dar certo na prática. O espaço do erro é garantido na sociedade por que ela mesma se constitui e se mantém pela luta e não pela harmonia, "dificilmente haverá algo a que poderíamos chamar o Bem". Nesse sentido, a república moderna admite o erro moral, desde que não seja excessivo, permitindo uma mentalidade de tolerância à corrupção, problema não só do Brasil, mas de países do primeiro mundo. Para Ribeiro, no entanto,

"Daí que a corrupção tenha lugar, quase por definição, justamente onde se exige muito: no único governo que, para viver, requer a virtude dos súditos. Assim, se a democracia cobra muito de nósfpede que superemos pela virtude nossa natureza egoísta, parcial), o risco nela è que a corrupção inscreva o despotismo, isto è, a morte da coisa pública em seu seio".

Portanto, o problema é colocarmo-nos a questão de se a corrupção não está se tornando a "alma do negócio" na educação. Fatal ao regime democrático de gestão das coisas da educação, é a engenharia política da aplicação dos recursos que faz com que interesses privados entrem em conflito com interesses públicos, por uma complexa rede de canais de poder, influência e tráfico. "Se a corrupção não ameaça a ditadura, mas, ao contrário, até a alimenta, quando ministrada a democracia ela pode ser fatal".

1.4 As estratégias da corrupção do FUNDEF

O Fundef tem a finalidade de redistribuir entre cada Estado e seus municípios recursos para o ensino fundamental. As origens das receitas provém do Fundo de Participação dos Municípios(13,2%), Fundo de Participação dos Estados (11,6%), ICMS ( 63,8%), IPI exportação (1,7%) e Ressarcimento pela desoneração das exportações -lei Kandir ( 3,7%). O caminho do dinheiro é complexo, mas merece também atenção. A cada mês, 15% do que os Estados e municípios arrecadam com as cinco fontes de receita que compõem o Fundef é automaticamente repassado para o fundo único. A partir do total arrecadado, o dinheiro é dividido entre o Estado e os municípios com base no número de alunos matriculados no ensino fundamental. Cada Estado e município tem uma conta corrente no Banco do Brasil específica para receber os depósitos referentes ao fundo. Os depósitos são feitos três vezes ao mês (dias 10,20 e 30)

Feito o depósito, o dinheiro pode ser usado segundo os critérios estabelecidos na lei: 1) 60% para pagamento de salário dos professores. Desse total, uma parte pode ser aplicada, até 2001, para capacitar professores leigos e 2) 40% em ações para manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental (construção e reforma de escolas, compra de material didático e equipamentos, capacitação de professores, serviços diversos e pagamento de inativos). A prestação de contas deve ser feita periodicamente. Os Estados e municípios enviam, aos tribunais de conta, relatórios detalhando como o dinheiro foi aplicado. A fiscalização é feita pelos tribunais de conta. Também existem, nos municípios, nos Estados e em nível federal, conselhos para acompanhar se os recursos estão sendo aplicados corretamente.

O sistema serve para garantir dinheiro para a educação. Os recursos saem diretamente de fundos a que Estados e municípios teriam direito - tirados do bolo geral do ICMS e do IPI, por exemplo - e são redistribuídos para uso exclusivo no ensino. O problema é que a verba do fundo representa uma enxurrada de recursos para muitas prefeituras vem sendo desviada por uma infinidade de pequenos ralos municipais que só agora começam a ser descobertos. Por enquanto, o quanto dos R$ 14 bilhões anuais do Fundef que deixam de ser aplicado como se deve, é uma incógnita. Só no segundo semestre de 1999, o MEC recebeu 271 denúncias de desvio ou mau uso dos recursos, envolvendo 173 municípios.Em Santa Brígida (BA), por exemplo, há professoras que dão aulas ao ar livre por falta de escolas adequadas. A prefeitura diz que o dinheiro do Fundef é insuficiente, mas há suspeita de irregularidades na folha de pagamento da educação na cidade.

Como é possível que recursos dessa ordem possam ser desviados de sua finalidade? Existe uma infinidade de fatores envolvidos, mas indicamos alguns que levantamos a partir da imprensa e que nos parecem indicar estratégias de poder e subjetividade presentes nas organizações educativas. Utilizando fragmentos coletados em jornais, nossa preocupação é expor de uma forma rigorosa, mas não rígida, a realidade social da corrupção na educação, e como se aparecem as primeiras reconstruções sobre desvio de dinheiro na educação. São, numa palavra, estratégias, ou dispositivos que permitem a possibilidade de construção de um saber sobre o fluxo do fundo, e a possibilidade de transformação, por cada sujeito, estrutura ou poder,para extrair dele, aumento da sua força. Dispositivo, para Foucault, é:

"através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogéneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Dispositivo è a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. Em segundo lugar, entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo,ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que,em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante"

Podemos encontrar na sociedade brasileira uma rede de dispositivos políticos responsáveis pela estruturação da corrupção, que perpassam a estrutura social. Tomando de empréstimo a conceituação de poder de Foucault, compreendemos a corrupção na educação como a forma que perpassam a estrutura social, numa rede de dispositivos (estratégias) de poder que se exercem cotidianamente. Se a corrupção for, como pensamos, um efeito de poder poderemos pensar junto com Foucault que "há possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados elo poder; podemos sempre modificar sua dominação segundo uma estratégia precisa" De uma certa maneira, a corrupção exemplificaria esse jogo de saber, poder e verdade institucionais. Vejamos algumas estratégias utilizadas.

 

 

1.5 A estratégia das diferentes interpretações da lei

As primeiras notícias a darem conta de corrupção nas contas da educação começaram a surgir em março de 1999, quando Marta Avancini, publicou na Folha de São Paulo, uma matéria onde revelava que as contas de 98 incluíam despesas "ilegais". O caso era o seguinte.A Prefeitura de São Paulo incluiu, em sua prestação de contas na área de educação de 98, despesas com itens que não poderiam ser incluídos como gastos no setor. A Lei Orgânica do Município de São Paulo determina que a prefeitura tem de aplicar 30% do que arrecada com educação. Como a prefeitura declarou ter gasto, em 98, R$ 1,4 milhão com educação, teria contribuído com 30,26% da arrecadação. Mas esse percentual inclui despesas com "assistência" e "cultura", o que é irregular, segundo a Constituição Federal.

Isso significa que o dinheiro tinha de ser aplicado, por exemplo, em construção de escolas, no pagamento dos salários dos professores, capacitação e treinamento foi desviado. Primeira estratégia: a mal versação da verba publica surge do conflito de interpretações da lei. Vejamos como ocorreu neste caso. À época, para os especialistas da área "é claro que assistência social e cultura colaboram na educação, mas elas não podem ser incluídas na prestação de contas do setor. A inclusão desses gastos na prestação de contas é irregular", defendia o advogado Adib Salomão, especializado em educação. A conclusão é clara: a prefeitura aplicou em educação menos que os 30% previstos na lei. Por outro lado, o secretário das Finanças do município, José Antonio de Freitas interpretou a lei a sua maneira. Para ele, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional permitem que ele use os recursos como descrito na prestação de contas. Seriam gastos com cultura, mas dinheiro repassado ao departamento de Bibliotecas Infanto-Juvenis e Bibliotecas Públicas, que têm grande número de estudantes entre seus frequentadores. A verba para assistência se refere a "convénios de cunho sócio-educacional, que abrangem crianças na faixa de 7 a 14 anos, portanto, a mesma do 1o grau". Assim, os administradores, nas brechas da te/, fazem prestações de contas que mascaram as origens de recursos, fonte de confusão nos tetos mínimos de aplicação. Também na época, o estudo realizado pelo vereador Nelson Proença (PSDB-SP) mostrou que as irregularidades da prestação de contas se deram porque não incluiu receitas adicionais, como a cota do salário educação (algo em torno de R$ 34 milhões).

1.6 A estratégia do "por outra coisa no lugar"

Apesar de as fraudes do FUNDEF começarem a aparecer por todo o país, ao final do mês de março, o MEC anunciava a imprensa que, junto com os Estados iria combater as fraudes. Era esperado portanto, que o MEC iniciasse um processo direto sobre as denúncias. Um indicador da corrupção do estado é a capacidade de "por outra coisa no lugar" naquilo que lhe é exigido (pela sociedade, pela imprensa). Não foi nos desvios do FUNDEF que o governo inicialmente se dedicou, mas nas fraudes no Censo Escolar-99, que começaria a ser respondido por 215 mil diretores de escolas públicas e privadas de educação básica do país no ano de 1999. A razão disto é que o governo afirmava então que em 98, uma auditoria realizada pelo MEC descobriu 148,3 mil alunos fantasmas no ensino fundamental, todos da rede municipal. Era verdade. As prefeituras "lucravam" ao declarar que atendem a mais alunos do que o real porque a maioria dos recursos federais - como os da merenda escolar, livro didático e Fundef (fundo de valorização do magistério) - são repassados aos municípios proporcionalmente ao número de alunos matriculados no ensino fundamental. Assim, quanto mais alunos a rede municipal declarar, mais dinheiro as prefeituras receberão.

Um dos indicadores do governo estava no fato de que em 1998 auditou 385 municípios em cinco Estados do Norte e Nordeste e constatou que o crescimento da matrícula ficou muito acima da média regional. Como o MEC não tem condições de fiscalizar todos os 5.506 municípios brasileiros, pretendia contar com a ajuda dos Estados. A imprensa publicou a justificativa: "Não temos condições de fiscalizar as informações prestadas por todas as escolas. Por isso, vamos visitar os Estados e pedir que eles façam um acompanhamento mais próximo dos municípios", segundo Maria Helena Guimarães, presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais).

Os Estados tinham interesse em colaborar com o MEC na fiscalização porque, com o Fundef, eles são obrigados a transferir dinheiro para os municípios em que o gasto por aluno é inferior a R$ 315. Se essas prefeituras informam ter mais alunos do que o real, a "perda" dos Estados é maior.Em 1998, por exemplo, a descoberta das 148,3 mil matrículas fantasmas evitou que os cinco Estados auditados repassassem R$ 30 milhões aos municípios que fraudaram informações.O MEC economizou R$ 16 milhões - parte da complementação federal que iria para essas cidades - naquele ano onde só houve fiscalização "in loco" (diretamente nas escolas) em 70 dos 385 municípios auditados. Nos demais, o controle foi feito com a apresentação dos diários de classe e das fichas de matrícula. Em que pese as justificativas do MEC, deliberadamente o governo opta por atuar em outra frente de trabalho, desviando-se claramente do que a sociedade civil apontava como mal versação de verbas.

1.6 A estratégia da morosidade

Observando as notícias de jornal, a segunda estratégia da corrupção se baseia na morosidade do Estado, que diz-se lento para cumprir as exigências necessárias para o repasse de verbas. Nada mais indica a corrupção de um Estado do que a aparente tranquilidade com que aceita não ter condições de cumprir prazos. Se não vejamos. No mês de abril, novas denúncias chegam aos jornais: verba de US$ 500 mi a ensino profissionalizante está parada desde outubro de 98, US$ 500 milhões do Proep - programa federal para reformar o ensino profissionalizante e ampliar a oferta de vagas - estão à disposição dos governos estaduais. Mas só seis Estados (São Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia e Goiás) apresentaram projetos mostrando o que pretendem fazer com o dinheiro, condição obrigatória para que a verba fosse repassada.

Dos seis, apenas São Paulo, Ceará e Rio Grande do Sul acabaram recebendo recursos para tirar seus projetos do papel, quase dois anos após o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e o MEC terem assinado o acordo de empréstimo do Proep.Os US$ 500 milhões do Proep colocados à disposição dos Estados são financiados pelo BID e pela União, sem a exigência de contrapartida financeira dos governos estaduais. Para receber o dinheiro do acordo com o BID, basta que os Estados apresentem projetos com o número de alunos que precisam ser formados, levantamento da rede de escolas profissionalizantes que já existe e um plano apontando onde serão construídas ou reformadas as unidades beneficiadas.

À época, eram exigências semelhantes às feitas pelo Ministério da Saúde para liberar os R$ 250 milhões para melhoria de prontos-socorros e maternidades.O coordenador do Proep a época, Raul do Valle, afirmava que um dos motivos da lentidão dos Estados foi a mudança de governo."Muitos Estados em que o governador não foi reeleito tiveram de começar do zero. Outros já tinham projetos quase prontos do governador anterior, mas pediram prazo para fazer modificações', registram as reportagens publicadas na Folha de São Paulo.

Como os US$ 500 milhões do Proep poderim ser gastos em seis anos, Valle afirmava que mesmo os Estados mais lentos poderiam receber recursos. "Mas quem for eficiente vai receber mais."Os governos estaduais podiam perder dinheiro para escolas técnicas federais e organizações comunitárias que lidam com ensino profissionalizante, que também têm direito à verba "Distribuiremos as verbas de acordo com a demanda de cada Estado e com os projetos apresentados. Se as organizações comunitárias forem mais eficientes que os governos estaduais, pode haver remanejamento de recursos."

Além dos US$ 500 milhões do Proep, os Estados tinham a partir de agosto de 1999 mais US$ 500 milhões do Promed (Programa de Reforma do Ensino Médio) para melhorar a qualidade da educação e ampliar a oferta de vagas.O valor total do Promed era de US$ 1 bilhão. Mas, ao contrário do Proep, o Promed exigia a contrapartida financeira dos Estados. O BID emprestava à União US$ 500 milhões e os Estados tinham de arcar com o restante.

A falta de dinheiro para investir no ensino médio sempre foi uma das principais reclamações feitas pelos governos estaduais ao MEC.Como têm de destinar 15% de suas receitas para o Fundef (fundo de valorização do magistério), os secretários da Educação se queixavam de que não sobrava quase nada para o antigo 2o grau.Só que, até então, apenas Bahia, São Paulo, Ceará e Distrito Federal apresentavam seus planos iniciais, que ainda precisavam ser revisados e aprovados pelo MEC para que o dinheiro pudesse ser repassado a partir de agosto. Para Estados que necessitavam de recursos, a morosidade na administração só é concebível quando, paradoxalmente, e numa estratégia corrupta, não interessa o acesso aos recursos.

1.7 A estratégia de "deixar os Estados investigar"

Como o governo é moroso em iniciar suas investigações, e não raro, substitui e ocupa o espaço com outras atividades, termina que os Estados tomem a iniciativa. Em abril, a noticia de que o Ceará instaurou CPI para apurar "fundão" inicia uma serie de iniciativas semelhantes em vários estados. NO caso, a Assembleia Legislativa do Ceará instaurou uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar supostas irregularidades na aplicação de verbas do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação e Valorização do Magistério) no Estado.

No ano de 1988, o Fundef investiu R$ 864 milhões no sistema educacional público do Ceará.A instauração da CPI foi pedida pelo deputado Artur Bruno (PT), que se baseou em denúncias enviadas ao seu gabinete. O presidente da Assembleia, Wellington Landim (PSDB), solicitou que o Tribunal de Contas dos Municípios fizesse uma auditoria nos municípios denunciados e constatou irregularidades nas contas de 16 prefeituras. Segundo Landim, o relatório do TCM constatou que as prefeituras aplicaram recursos do Fundef em outras áreas da administração que não a educacional, pagaram despesas sem a necessária licitação e não implantaram um plano de carreira e remuneração do magistério, conforme determina a legislação.O relatório do TCM constatou, ainda, segundo Landim, que as prefeituras desrespeitaram uma norma do Fundef, a qual determina que 60% dos recursos de cada município devem ser gastos na remuneração do magistério.

A prefeitura de Pacajus (46 km ao sul de Fortaleza), por exemplo, foi acusada de gastar verbas do Fundef na contratação de bandas de forró e de superfaturar contratos com uma firma que fazia a reciclagem de professores do município. O prefeito de Pacajus, José Wilson Chaves (PPB), negou as acusações.A época, Bruno disse que havia fortes indícios da existência de uma "máfia" de entidades de qualificação de professores, as quais são contratadas a "peso de ouro" pelas prefeituras. A repercussão é imediata, e em vários estados, emergem comissões de inquérito para investigar os desvios de verbas. O Estado, num primeiro momento, exime-se de investigar.

1.8 A estratégia do uso de brechas

A razão da corrupção: os prefeitos driblam a questão fiscal e acham brechas na lei. No calhamaço de denúncias relativas ao Fundef recebidas pelo MEC, a mais comum é de atraso do salário dos professores (27%). É um bom indício de que há problemas no uso do dinheiro, pois o fundo tem um sistema de depósito automático que torna todo atraso inexplicável. O dinheiro cai na conta de prefeituras e Estados três vezes por mês; se não vai parar na mão do professor é porque foi desviado para outro fim.

Outra queixa recorrente: o uso indevido do dinheiro. Também nesse caso, há exemplo _mau exemplo_ na cidade baiana de Santa Brígida. O município está sendo investigado por ter incluído, de modo aparentemente irregular, pelo menos cinco funcionários na folha de pagamento da área da educação. É o caso de Josilene do

Carmo dos Anjos, que é registrada como professora, com salário líquido de R$ 217,24, mas trabalha na delegacia de polícia.

A administração de Santa Brígida atribui as irregularidades a enganos. "A funcionária da delegacia pode ter sido transferida de outra área e acabou sendo mantida na folha da educação", diz a prefeita Rosália Rodrigues França (PTB). Ela admite que não foi gasta verba alguma na casa da professora Valmira. "Na hora de fazer a prestação de contas, o contador deve ter atribuído a essa escola uma verba aplicada em outra. Mas garanto que o material foi usado em alguma escola", diz.

Para a escola de Juazeirão, outro bairro rural do município, o dinheiro não foi. Ali, 32 alunos assistem aulas embaixo de uma árvore, com a lousa enganchada no tronco, por falta de espaço na "classe" de 9 metros quadrados. "Não me importo com as galinhas e os cachorros que circulam durante a aula. As crianças estão aprendendo", afirma a professora Evaneide Cordeiro da Silva.

No Ceará, a principal irregularidade já detectada pela CPI foi a contratação de cursos que deveriam habilitar professores _mas não habilitam. Nas palavras do relator da CPI, deputado Artur Bruno (PT), foi criada no Estado uma "máfia da capacitação".A partir de 2001, o MEC não vai mais tolerar que professores leigos continuem dando aulas. A lei autoriza o gasto de parte do fundo na habilitação desses profissionais, mas o dinheiro acaba indo para outro tipo de curso.A Prefeitura de Cascavel (53 km ao sul de Fortaleza) gastou no ano passado R$ 714 mil da verba do Fundef em três cursos que, legalmente, não servem para habilitar. Segundo a Secretaria da Educação do Estado, o município tinha 42 professores leigos, o que significa que a pseudo-habilitação custou R$ 17 mil por profissional.

A prefeitura tem estatística diferente. O secretário interino da Educação, João Bosco Nesres, diz que não há mais professores leigos na rede de ensino de Cascavel e que os cursos não deveriam "habilitar", mas "capacitar".Aí começa uma discussão que pode acabar numa irregularidade de R$ 20 milhões. Para Artur Bruno, relator da CPI, há uma imprecisão na lei do Fundef _um artigo permite gastar em habilitação de professores leigos e outro em capacitação de forma genérica. A CPI já apurou que há pelo menos 13 empresas especializadas nesse filão, e seu relator estima em R$ 20 milhões o possível desvio.

Para o secretário da Educação do Ceará, Antenor Naspolini, a legislação é dúbia, mas a maioria dos erros ocorre por simples má-fé. A secretaria fez cursos ensinando prefeitos a usar os recursos do fundo e criou programa para habilitar leigos, mas constatou que muitos preferiram contratar empresas não autorizadas. No caso de Cascavel, as características de um dos cursos contratados mostram que, mesmo que o objetivo fosse capacitar, o dinheiro estaria longe de ter sido bem empregado. A empresa lAM/Fugesp recebeu R$ 339 mil para dar seu curso Pro - cidadão, que promete noções de psicologia e combate às drogas, por exemplo. O curso foi contratado para 120 pessoas, mas há apenas 61 alunos matriculados e só 25 comparecem. Pelo menos uma aluna é professora de escola particular, não pública, o que é irregular. As aulas acontecem no refeitório de uma escola, em que as cadeiras de alunos dividem 50 metros quadrados com mesas de refeição.O diretor-executivo da empresa é Sérgio Rodrigues Lima, que até o início deste ano trabalhava como advogado da prefeitura.

O superintendente da lAM/Fugesp, Baltazar Pereira Júnior, afirma que quem deve ser questionada pela contratação dos cursos é a prefeitura. "Fomos contratados para capacitar professores e fizemos isso com competência", diz.

O desperdício de dinheiro em Cascavel salta à vista quando comparado com o gastou a Prefeitura de Santana do Acaraú (CE) para dar formação a seus 43 professores leigos. Gastou-se lá, por professor, menos de 10% do que em Cascavel _R$ R$ 1.120 contra os R$ 17 mil de Cascavel.A Prefeitura de Caucaia (região metropolitana de Fortaleza) gastou pelo menos R$ 519 mil com cursos custeados pela verba do Fundef em 1998. Em sua avaliação, contratou três empresas com o "melhor corpo de técnicos" e preços menores.

Uma delas emitiu nota fiscal com o endereço de um motel, outra deu nota com endereço inexistente e a terceira funciona em uma garagem residencial. Nenhuma das três tem autorização legal para habilitar os leigos.

O Instituto Educare faturou R$ 37 mil por projetos educacionais, mas o endereço da nota fiscal não existe. Também ninguém atendeu, em dois dias diferentes, em outro endereço da empresa que aparece na lista telefônica.A Capacity levou R$ 157.200 pela elaboração de projetos educacionais. A empresa funciona em uma sala de 10 metros quadrados, localizada na garagem da residência de Péricles Lessa, diretor da empresa, em Fortaleza. Quando a Agência Folha esteve na sede da Capacity, uma mulher atendeu e disse que iria chamar o diretor. Ninguém mais apareceu ou telefonou à reportagem em resposta aos recados deixados.A empresa Fácil, que ganhou R$ 13.704,00 para capacitar secretárias de escolas, diz que emitiu nota com endereço do motel Ideal, no centro de Fortaleza, por um problema de impresso. "Já funcionamos naquele endereço", explica Reinaldo Teixeira, diretor da empresa. "Foi um erro grave não ter feito bloco de notas novo."

1.9   A estratégia da fiscalização deficiente

Com frequência as irregularidades envolvendo o Fundef têm uma parceira comum: a fiscalização deficiente da prestação de contas. A lei do Fundef previu conselhos para acompanhar como os recursos são gastos, mas o controle tem patinado neste momento de implantação.Pesquisa do MEC indica que só 80% dos municípios têm conselhos constituídos, o que transforma os outros 20% em fonte de preocupação. Basta dizer que um deles era a cidade de São Paulo, onde a prefeitura há anos é acusada de não aplicar o que deve em educação. A cidade recebeu recursos desde o ano passado, mas só criou seu conselho de fiscalização há pouco mais de dois meses.

Da cidade baiana de Cícero Dantas (350 km de Salvador), o Tribunal de Contas recebeu uma prestação de contas informando que a escola Egídio Gonçalves de Souza havia sido reformada no ano passado. Ocorre que as obras só começaram agora em setembro _em pleno período letivo, o que obriga os alunos a ocupar duas salas improvisadas em um parque de vaquejada.No local, falta cozinha para preparar a merenda, feita no prédio de outra escola a 50 metros dali. A água que as 40 crianças bebem e que é usada no banheiro também é retirada da escola ao lado, transportada em baldes pela zeladora.

O assessor da Secretaria Municipal da Educação Antônio Carlos Passos Soares admite que o que foi chamado de reforma não passou de "uma mão de tinta e uns reparos no telhado". Mas diz que _agora, sim_ a prefeitura vai construir as cinco novas salas.Só uma falha na fiscalização local explica casos como o do funcionário Bruno de Queirós Oliveira. Ele aparece na folha de pagamento de 99 da área de educação da Prefeitura de Serrinha (BA), com cargo de vice-diretor e salário de R$ 73,60. O problema é que Bruno tem 16 anos.O secretário da Educação e da Cultura da cidade, Elso Pimentel de Lima, diz que pode ter havido irregularidades no uso do dinheiro do fundo, mas que "essa é uma questão velha". "Fizemos concurso para corrigir as distorções e exoneramos 700 não-concursados. Esse menino deve ter sido incluído no grupo", acredita Lima.

Esse caso está sendo investigado pelo Ministério Público Federal, como tantos outros que conseguem driblar a fiscalização do município, mas caem na malha fina da promotoria ou dos Tribunais de Contas.No Rio Grande do Norte, o prefeito de Alexandria, José Bernardino de Sena (PMDB), foi denunciado pelo Ministério Público e afastado pela Justiça na quinta-feira acusado de colocar recursos do Fundef em sua própria conta corrente. Outro prefeito afastado, Túlio de Paiva (PMDB), de Rio do Fogo, foi denunciado duas vezes pelo MP, sob acusação de pagar contas normais do município com recursos do fundo.

Em Minas, é o próprio governo do Estado que deve explicações. O Executivo é acusado de, no final do ano passado, não ter repassado R$ 43 milhões a 741 municípios do Estado que municipalizaram o ensino fundamental. Os municípios ganharam os alunos, mas não a verba correspondente.CPI que investiga o uso de recursos de fundos estatais apurou que o dinheiro do Fundef foi para o caixa único da Secretaria Estadual da Fazenda e acabou sendo utilizado para outras finalidades.Azeredo diz que, em seu governo, foram investidos 46% da receita estadual em educação. E sustenta que o repasse para as prefeituras não era obrigatório por lei.

1.10   A estratégia da minimização da importância

Novamente, a reação do governo é minimizar os efeitos dos casos de corrupção. Os casos de supostos desvios de recursos do Fundef são isolados e não invalidam seus efeitos positivos, avalia o ministro Paulo Renato Souza (Educação)."A apreciação geral do fundo, baseada em estudos feitos pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Económicas), é positiva. Na maioria dos Estados os recursos estão sendo bem aplicados. Mas é claro que não se pode esperar que não haja casos de mau uso ou desvio", diz ele, que baseia sua avaliação nas denúncias que vêm chegando à Diretoria de Acompanhamento do Fundef. "São 271 denúncias em um universo de 5.506 municípios."

O ministro diz esperar que, se as denúncias de irregularidades em fase de investigação se comprovarem, os responsáveis sejam punidos. "O Fundef é um grande êxito como política para melhorar a qualidade do ensino. Se as denúncias forem comprovadas, é preciso que haja punição."0 balanço do primeiro ano de vigência do Fundef, divulgado em março, revela que houve aumento da remuneração dos professores (12,9% em média no país) e do valor per capita gasto por aluno _39% dos municípios brasileiros tinham piso abaixo do limite mínimo nacional atual de R$ 315. Os municípios também receberam uma injeção de recursos: 2.073 cidades tiveram acréscimo de receitas da ordem de R$ 2 bilhões _46% desse total foram para as cidades do Nordeste.

O ministro diz ainda que o próprio MEC está criando condições para receber as denúncias e para que elas sejam analisadas _depois de passarem por uma avaliação prévia, são encaminhadas ao Ministério Público ou aos tribunais de contas.

Ele considera ainda que as investigações sobre as suspeitas de desvios de dinheiro do Fundef são consequência de um novo espírito que está se criando no Brasil: o de fiscalização da aplicação dos recursos públicos."lmplantamos políticas que permitem que o livro didático e a merenda cheguem às escolas. Com isso, as pessoas percebem que algo está sendo feito e que há uma mudança, uma preocupação maior com a educação. Em cima disso, veio o Fundef e uma grande campanha de divulgação e conscientização. As pessoas começam a querer saber o que está acontecendo no seu município e se mobilizam."

1.11 A sociedade indignada: ilnicia a disseminação das CPIs

As CPIs chamam a atenção para o fato de que os Estados fazem uso irregular do fundão. Depois do Ceará, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul têm problemas de uso indevido de recursos do Fundef em 98 para pagar funcionários não ligados ao ensino fundamental, o que é proibido por lei. As denúncias foram feitas Brasília por representantes dos Conselhos Estaduais de Acompanhamento e Controle Social do Fundef, responsáveis por fiscalizar a aplicação dos recursos do fundo.

É proibido usar recursos do Fundef para pagar servidores públicos ou mesmo para pagar servidores da Educação não ligados ao ensino fundamental.Não foi o que aconteceu no Espírito Santo. Cerca de R$ 27 milhões dos R$ 209 milhões que deveriam ter sido aplicados no ensino fundamental em 98 "desapareceram" das contas do Fundef.A rede de corrupção é tamanha que os R$ 27 milhões foram desviados para pagar servidores de outras secretarias, com aval do Tribunal de Contas do Estado.

Em Mato Grosso do Sul ocorreu problema semelhante: 98% dos R$ 82 milhões de recursos do Fundef que deveriam ter sido aplicados na rede estadual de ensino fundamental em 98 foram usados para pagar pessoal."Só sobraram 2% para investir na capacitação de professores e na melhoria das condições físicas das escolas", reclama Francineide Alves Pereira, representante dos funcionários da Secretaria da Educação no conselho de fiscalização, em matéria do Jornal Folha de São Paulo.Em Mato Grosso do Sul, o dinheiro do Fundef não foi desviado para outras áreas, mas o problema é que foi usado para pagar servidores técnico-administrativos da Secretaria da Educação não ligados ao ensino fundamental.

Outro problema grave é que toda a folha de pagamento de professores aposentados também foi paga com recursos provenientes do Fundef.Nem a emenda constitucional 14 nem a lei que regulamentou o Fundef vedam o uso de recursos do fundo para pagar aposentados, mas TCES de vários Estados têm dado recomendação contrária e o fato começa a ser investigado pelas CPIs.

 

 

1.12 A reação dos municípios e estados

Da mesma forma, o município de Santo André (SP) conseguiu uma liminar desobrigando a prefeitura de repassar 15% de sua arrecadação com impostos para o Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério).A decisão elevou para quatro o número de municípios que estiveram isentos do repasse em 1999: Santo André (SP), Diadema (SP), Ribeirão Pires (SP) e Recife (PE). Rio Grande da Serra (SP), que também entrou com pedido, ainda aguardava parecer da Justiça.

Segundo Selma Rocha, secretária de Educação e Formação Profissional de Santo André, o argumento utilizado pela prefeitura do município foi o mesmo dos outros: a inconstitucionalidade da emenda 14, que criou o fundo.F/cou claro a toda a nação que as Prefeituras de São Paulo não usam toda a verba do Fundef. Em pelo menos três municípios de São Paulo, parte dos recursos do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) está sendo guardada em contas bancárias.Como o gasto com a remuneração dos professores não atinge os 60% dos recursos repassados, como determina a lei que criou o fundo, há uma sobra de dinheiro.Em Adamantina são cerca de R$ 450 mil parados. Em Junqueirópolis são R$ 300 mil.As duas prefeituras alegam que o dinheiro está depositado em uma conta bancária por um motivo simples: eles temem que o Estado solicite o dinheiro de volta.

A confusão é gerada pelo primeiro decreto de municipalização (40.889), de dezembro de 97, que não obrigava os municípios a pagar aos professores provenientes do Estado. Dessa forma, esses docentes continuaram a receber do governo estadual.Segundo a assessoria da Secretaria da Educação de São Paulo, os municípios não teriam de devolver o excedente ao Estado. Em 98, um novo decreto (43.072), que passou a valer apenas para os novos convénios, obrigou os municípios a pagar aos professores da rede estadual.

De acordo com números da própria prefeitura, mesmo que o município tenha de pagar os professores do Estado, ainda vão sobrar R$ 75 mil. O que já daria um abono de R$ 2.000 por professor.Em Porto Feliz, onde também existe uma sobra de dinheiro, os professores ainda não receberam o abono porque ainda não foi aprovado o projeto de lei que regulamentaria essa gratificação.

1.13   O FUNDEF chega aos tribunais

Em agosto, as crises do Fundef chegam a justiça. A Prefeitura de Diadema (SP) obteve liminar isentando-a de repassar sua cota mensal ao fundão (como é conhecido o Fundef, fundo de valorização do magistério).Diadema destinou R$ 13,9 milhões ao fundo em 98 e recebeu de volta R$ 585 mil. Ou seja, teve um "prejuízo" de R$ 13,4 milhões, que foram repassados à Secretaria Estadual da Educação e a outras prefeituras paulistas.

O ministro Paulo Renato Souza (Educação) afirmou que o MEC iria questionar na Justiça a liminar obtida por Diadema. "A assessoria jurídica do ministério já está estudando com a Advocacia Geral da União a melhor maneira de derrubar a liminar." Declarou aos jornais na época. Diadema perdia dinheiro para o Estado porque tem arrecadação alta e poucos alunos matriculados na rede municipal. Dos 67.688 alunos da rede pública de ensino fundamental de Diadema, apenas 866 estudavam em escolas municipais em 98, contra 66.688 matriculados na rede estadual.

Como o dinheiro do Fundef é distribuído a Estados e municípios de acordo com o número de alunos matriculados no ensino fundamental, Diadema recebia muito menos do que contribui. Mesmo com a obrigação de destinar ao Fundef parte de seus recursos, a prefeitura dispõe de sete vezes mais verba para gastar com cada aluno do ensino fundamental do que o Estado. Enquanto cada aluno da rede municipal teve à disposição em 98 R$ 7.000, cada um da rede estadual ficou com R$ 900.Com a desobrigação do Fundef, a Prefeitura de Diadema terá R$ 22,5 mil anuais para gastar com cada um de seus 866 alunos do ensino fundamental."Isso não faz sentido, estão querendo criar um apartheid na rede de ensino de Diadema. Em vez de questionar o Fundef na Justiça, o prefeito deveria assumir as escolas estaduais, já que a educação fundamental é obrigação do município", diz Ulysses Semeghini, coordenador do Fundef a imprensa na época.Com a liminar obtida por Diadema, já são duas as prefeituras que conseguiram na Justiça a suspensão da contribuição ao Fundef. Em abril, a Prefeitura de Recife entrou com ação cautelar na 5a Vara Federal pedindo a suspensão do repasse mensal de R$ 900 mil que era obrigada a fazer ao Fundef e obteve liminar.O MEC tentou derrubar essa liminar pelo menos quatro vezes, mas fracassou em todas.

Nas duas ações contra o fundo que chegaram ao Supremo Tribunal Federal, movidas pelos partidos de oposição e pelo governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, as liminares foram negadas. Em ambos os casos, o mérito da questão ainda não foi julgado.

1.14   A reação das demais instituições sociais

O governo começa a sofrer pressões. Uma decisão do Tribunal de Contas da União, divulgada ontem, obriga o MEC (Ministério da Educação) a rever os critérios que vêm sendo adotados para distribuir os recursos do Fundef (Fundo de Desenvolvimento e Manutenção do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério). De acordo com a decisão do tribunal, o valor dos repasses terá de levar em conta dois critérios que não vêm sendo considerados: a estimativa de matrículas novas, computadas no início do ano letivo, e o pagamento de valores diferenciados para estudantes da 1a à 4a série e da 5a à 8a. Os dois critérios constam da legislação que criou e regulamentou o Fundef.

O ministro Humberto Souto, relator do processo, determinou prazo de 15 dias _a contar da data da notificação, para que o MEC comece a definir critérios para incluir esses critérios no cálculo dos repasses.Até o final da tarde de ontem, o MEC não havia sido informado oficialmente da decisão, segundo a assessoria de imprensa. A Folha tentou contatar o diretor de Acompanhamento do Fundef, Ulysses Cidade Semeghini, mas ele não foi encontrado.

A decisão foi tomada a partir de uma contestação apresentada ao tribunal pela prefeitura de Bariri (342 km de São Paulo), cujo caso ilustra o que pode estar ocorrendo em outras cidades do país. O município tem 565 alunos matriculados na rede municipal, mas recebe repasses sobre 474 matrículas _ou seja, o cálculo não leva em conta 91 matrículas e por isso a cidade perde receita.Souto também determinou a revisão da portaria que fixou o coeficiente de participação no Fundef para este ano o que significa, na prática, que o governo poderá ter de compensar eventuais perdas dos Estados e municípios.

Nos estados, a reação continua. A Assembleia Legislativa aprovou a criação de uma CPI para investigar as contas do governo estadual na área da Educação.Segundo estudos do deputado Cesar Callegari (PSB), que foi o autor do pedido, mais de R$ 5,5 bilhões deixaram de ser aplicados pela secretaria desde 1995.Se isso ficar comprovado, o governo estaria deixando de cumprir a legislação, que obriga o Estado a aplicar pelo menos 30% da arrecadação em Educação.Callegari afirma que três pontos serão os principais alvos da investigação. O primeiro seria a inclusão do gasto com profissionais inativos no Orçamento que, segundo o parlamentar, só em 1999 foi de R$ 1,9 bilhão.O outro ponto é que o governo deixaria de considerar a parte do ICMS, relacionada a juros, multas e atrasos, como verbas que devem ser repartidas. Por último, o deputado aponta as transferências de impostos pelo governo federal, de 95, 96 e 97, que não entraram nas contas da Educação.

Callegari alega também que, na prestação de contas, não estão sendo colocados os recursos do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) e do salário-educação como valores adicionais.De acordo com o deputado Lobbe Neto (PMDB), presidente da Comissão de Educação na Assembleia, a CPI deverá ser instalada já na próxima semana.O secretário do Planejamento de São Paulo, André Franco Montoro Filho, disse que os recursos estão sendo devidamente aplicados e que os inativos, de fato, têm sido colocados na conta da Educação. "Entendo que esse é um gasto da Educação", disse.Ele afirma ainda que fará os devidos esclarecimentos, mas que não deverão ser comprovadas irregularidades. "Nós temos investidos os 30%, tanto que o Tribunal de Contas e a própria Assembleia têm aprovado", afirma.

Liminar concedida na última quinta-feira, pela juíza federal Raquel Fernandez Perrini, proíbe que o valor mínimo per capita por aluno do ensino fundamental seja inferior ao definido pela lei que criou o Fundef (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) em 2000.A ação civil pública, movida pelo Ministério Público Federal, tinha como objetivo evitar que o governo descumprisse a lei, como ocorreu este ano.Pela lei, o valor per capita neste ano deveria ter ficado em torno de R$ 430. O valor efetivo, determinado por um decreto, foi de R$ 315 - o mesmo de 1998.

Segundo Ulisses Semeghini, coordenador do departamento de acompanhamento do Fundef, do Ministério da Educação (MEC), até ontem ele não havia sido notificado da liminar."0 MEC vai analisar e ver que atitude tomará", disse.Hoje, oito Estados recebem complemento da União para alcançar o valor de R$ 315.E outros oito Estados, de acordo com Semeghini, devem ter valor mínimo entre R$ 315 e R$ 400, e exigiram complemento da União se o valor fosse o estipulado pela lei.

O grande número de 'denúncias levou a Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados instala hoje uma subcomissão para apurar denúncias de irregularidades envolvendo mau uso e desvio de recursos do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) em todos os Estados.O pedido para a constituição da subcomissão foi feito pelos deputados Gilmar Machado (PT-MG) e Walter Pinheiro (PT-BA), com base em denúncias contidas em reportagens publicadas pela Folha em setembro, que apontavam irregularidades em São Paulo, Ceará e Bahia.

Reportagem da Folha mostrou que, de julho para cá, o Ministério da Educação recebeu 487 denúncias de irregularidades envolvendo o Fundef em 24 Estados, em um total de 266 cidades.A primeira providência da subcomissão será levar ao TCU (Tribunal de Contas da União) um plano para a realização de auditorias. O deputado Machado sugere que, a cada três meses e sem aviso prévio aos municípios, os tribunais de contas dos Estados realizem por amostragem devassas nas contas do Fundef.

A Câmara dos Deputados vai investigar o desvio de verbas públicas em cidades de todo o país por meio da emissão de notas fiscais frias. Levantamento feito pela Agência Folha em 20 Estados, publicado em 28 de novembro, mostrou como funciona a indústria de fraudes que sustenta a corrupção nas prefeituras.As investigações ficarão a cargo da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle (CFFC) da Câmara. O presidente da comissão, deputado Delfim Netto (PPB-SP), disse que o assunto entra em pauta nesta semana.Na reunião de hoje da CFFC, o deputado João Paulo Cunha (PT-SP) apresentará um requerimento solicitando a documentação das prefeituras citadas pela reportagem da Agência Folha.

No município de Palmas (TO), procuradores investigam o desaparecimento de R$ 1,1 milhão de dois convénios com os ministérios da Saúde e da Educação.O ex-prefeito Edwino Raimundo Schultz, da cidade de Chapadão do Sul (MS), é acusado de usar empresas fantasmas para desviar R$ 500 mil (o equivalente à receita mensal do município) de 1997 a maio último.No Espírito Santo, a Procuradoria da República denuncia um esquema que ficou conhecido pelo jargão "política da rapinagem". Nesta modalidade de fraude, prefeitos seriam eleitos e depois usariam notas frias para justificar gastos inexistentes e reembolsar os financiadores da campanha.No Ceará, uma CPI instalada na Assembleia Legislativa apura o sumiço de cerca de R$ 800 mil do Fundef em quatro prefeituras.

1.15 O que não é dito na política educacional: O MEC como agente corruptor

O MEC começou a enfrentar oposição e críticas na investigação. Secretários estaduais e municipais da Educação acusam o MEC de estar desrespeitando duas determinações da lei que criou o Fundef (fundo de valorização do magistério). Segundo eles, o MEC descumpriu a lei ao fixar o piso mínimo por aluno para 99 em R$ 315 - abaixo do valor definido pela lei, que seria de pelo menos R$ 420. Os secretários dizem também que o valor repassado aos Estados para custear alunos portadores de deficiências deveria ser superior. Atualmente, o valor repassado é idêntico para todos os alunos do ensino fundamental, inclusive os deficientes.

O atendimento aos alunos portadores de deficiências foi apontado como uma das áreas em que o Brasil menos avançou na última década, durante encontro encerrado ontem em Brasília para avaliar o cumprimento das metas da Conferência de Jomtien (Tailândia).Em 98, 430,3 mil alunos portadores de deficiência receberam atendimento em escolas especializadas ou em classes especiais nas escolas regulares. Apenas 46,8% desses alunos foram atendidos pela rede pública.Estima-se que haja no país cerca de 6 milhões de crianças e adolescentes de até 19 anos com algum tipo de deficiência. Ou seja, apenas 7,2% receberam atendimento especializado no ano passado.

Para Éfrem Maranhão, presidente do Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação), se o valor repassado para custear alunos portadores de deficiências fosse maior, o número de crianças atendidas cresceria bastante.

"Para as escolas públicas conseguirem atender adequadamente os alunos deficientes é preciso haver investimentos. Sozinhos, Estados e municípios não vão conseguir fazer isso", afirmou Maranhão. Segundo a secretária de Educação Especial do MEC, Marilene Ribeiro dos Santos, o ministro Paulo Renato Souza está estudando mecanismos para garantir que os alunos portadores de deficiência recebam recursos adicionais a partir do ano que vem. O que é estranho nesta discussão é que em nenhum momento o MEC foi considerado como agente fomentador da corrupção ao descumprir, como a pontavam outros órgãos, o que prezava a lei.

A discussão sobre o valor do piso mínimo, entretanto, está longe de ter solução. A lei estabelece que o piso deve ser calculado dividindo a previsão de arrecadação pelo número de matrículas no ensino fundamental.Por esse cálculo, o piso para 99 deveria ser de, no mínimo, R$ 420. Entretanto o MEC estabeleceu por decreto que o piso seria de R$ 315, mesmo valor de 98.Paulo Renato afirma que a interpretação do MEC é diferente da de Estados e municípios. No entanto, ele não explicou qual é sua interpretação.

1.16 O prejuízo das crianças

Um dos efeitos graves da corrupção na educação é que as crianças transformaram-se em objeto de barganha.Em um truque para obter mais verbas, prefeitos estão matriculando crianças com menos de 7 anos de idade e jovens com mais de 19 anos de idade no ensino fundamental.As verbas do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do magistério) são distribuídas proporcionalmente ao número de alunos atendidos pelas escolas estaduais e municipais. O Fundef é composto de um bolo de receitas estaduais e municipais, complementado pelo governo federal. O valor este ano é de R$ 14,1 bilhões.

Além de crianças, estão matriculando também adultos, para engrossar matrículas. Eles são retirados dos supletivos dos Estados e municípios. A maioria tem mais de 19 anos de idade.O inchaço ocorreu exatamente após a criação do Fundef, em 1996, com os prefeitos saindo à caça de matrículas. De 1998 até este ano, foram aproximadamente mais 120 mil novos alunos com seis anos de idade, pulando de 451 mil para 571 mil. A idade para entrada no ensino fundamental (ex-primário e ginásio) é de 7 anos até, teoricamente, 14 anos.

Em 1996, já havia 342 mil. Desde então, o salto foi de 66,8%, numa avalanche que explica por que as matrículas da pré-escola (4 a 6 anos de idade) caem bruscamente em todo o país _de 1997 a 1998, a redução foi de 200 mil.A expansão é mais veloz no Nordeste, atingindo, desde 1996,138%. Saltou de 99 mil alunos com seis anos, matriculados no ensino fundamental, para 238 mil. Na Bahia, no período, o salto foi de 63 mil para 94 mil.Não há, assim, critério pedagógico. A criança é usada para fazer número e tirar verba do Fundef.

O censo mostra que, em muitos Estados, cai o número de alunos de supletivos. Em Minas caiu de 223 mil em 1996 para os 48 mil deste ano; desses 48 mil, 32 mil são de estabelecimentos privados. Ou seja, nos cursos públicos quase não sobrou ninguém.Tanto o Piauí como a Bahia apresentam este mesmo movimento. Em 1996, havia 92 mil e, agora, 9.000. No Piauí, caiu de 94 mil para 22 mil.O próprio Ministério da Educação reconhece, em documento, a burla. Em um texto a ser apresentado, em Paris, na reunião da Unesco sobre educação, é apontada a transferência de alunos.

Com esse movimento, segundo o documento ministerial, os municípios estariam desmontando ou enfraquecendo a pré-escola _ um período considerado por especialistas como vital para o desenvolvimento emocional e intelectual de uma criança.Em um trecho, o documento afirma:

"O próprio fato de o Fundef incentivar a ampliação do ensino fundamental, garantindo recursos vinculados, parece ter desestimulado os municípios, principais responsáveis pela prè-escola, a continuarem a investir nesse nível de ensino. Isto è particularmente verdadeiro para os municípios que não cumpriam a determinação constitucional de investimento no ensino fundamental e aplicavam a maioria dos recursos destinados à educação na manutenção de creches e pré-escolas. Esses municípios perderam recursos na redistribuição do Fundef e estão dedicando maior atenção ao ensino fundamental, como forma de recuperá-lo".

Diante das milhares de matrículas de crianças com seis anos, o Conselho Nacional de Educação preferiu aceitar o truque, determinando apenas que as cidades comprovem que 95% dos alunos de 7 a 14 anos estão matriculados.Na prática, a burla foi aceita e legitimada, apesar do indício de fraude e falta de conteúdo pedagógico. A jogada dos prefeitos é mais um ingrediente das carências da educação infantil no país _creches e pré-escolas.

Estima-se que, para uma população de 12 milhões de pessoas de zero a três anos de idade, cerca de 800 mil usufruam das creches, atualmente.Relatórios preparados pelo governo indicam que a situação é de carência geral. Faltam professores qualificados, parques para brincadeira, bibliotecas e também água, esgoto e eletricidade.

Numa autocrítica, o documento do MEC a ser apresentado em Paris afirma: "Embora municipalização tenha um sentido positivo, indicando a tendência geral do sistema de se adaptar às recentes normas legais, é

preciso reconhecer que o governo federal ausentou-se mais do que devia da área da pré-escola, que conta com poucos estímulos e parcos recursos do poder central". AO final do ano o Ministério da Educação já tinha recebido 487 denúncias de irregularidades com verbas municipalizadas em 266 cidades brasileiras nos últimos cinco meses.O relatório sobre as fraudes no Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) _que começou a ser feito em julho último_ mostra que elas atingem 24 Estados.

No Ceará, o Tribunal de Contas dos Municípios encontrou notas frias no valor de R$ 391 mil nas contas da Prefeitura de Parambu, R$ 318 mil nas de Quiterianópolis, R$ 71 mil nas de Solonópolis e R$ 20 mil nas de Novo Oriente.As notas haviam sido emitidas por empresas fantasmas do esquema do coronel reformado da Polícia Militar José Viriato Correia Lima. Prefeituras do Piauí e Maranhão também se beneficiavam do esquema.Em Goiás, pelo menos 43 prefeituras são suspeitas de desviar recursos públicos usando notas frias das empresas fantasmas Papelaria Papirus, Star-Med e Pro-Med _as duas últimas usadas na fraude com recursos do SUS (Sistema Único de Saúde).Todas as 11 prefeituras de Tocantins sob investigação da Procuradoria da República são suspeitas de desviar tanto verbas do Fundef como do SUS. Em São Paulo, a administração de Mirassol é acusada de sumir com R$ 135,8 mil destinados à educação.Técnicos dos tribunais de contas ouvidos pela Agência Folha afirmam que é praticamente impossível descobrir o uso de notas fiscais frias na prestação de contas dos municípios relativa ao uso das verbas de saúde e educação.Tor força da lei, as prestações de contas podem ser simplesmente feitas com um balancete, sem as notas, que ficam no município, arquivadas em local apropriado, por até cinco anos, para possibilitar uma checagem, caso haja suspeita de alguma coisa errada", afirmou Jerônimo Leite, secretário-geral do Tribunal de Contas do Maranhão.

O problema é que ao minimizarem os efeitos, o governo esquece os grandes prejudicados, as crianças. Todas as tardes, de terça a sábado, a professora Valmira Santana Santos dá aulas para um grupo de 20 crianças baianas na varanda da casa dela. São três cómodos de taipa, sem água nem luz, no meio da caatinga e a mais de 470 quilómetros de Salvador. "Como não tem escola, ensino os meninos aqui mesmo", conta Valmira. "A gente trabalha como pode".

Pelas contas da Prefeitura de Santa Brígida, a professora Valmira não teria do que reclamar. Oficialmente, ela trabalha em uma escola que recebeu reforma recente no valor de R$ 1.640.Tudo ficção. Esse dinheiro jamais foi aplicado para melhorar a infra-estruturadesse grupo de alunos. A lousa continua apoiada sobre as duas vigas que sustentam a cobertura da varanda. As crianças continuam escrevendo sobre pedaços de compensado e sentadas em cadeiras improvisadas. "O pior é o vento, que atrapalha e enche tudo de poeira", diz a professora Valmira.

O caso de Santa Brígida serve para ilustrar os desvios que vêm ocorrendo com o dinheiro do Fundef (Fundo de Desenvolvimento e Manutenção do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), um fundo para educação criado pelo governo federal para melhorar salários e infra-estrutura do ensino fundamental (o antigo 1o grau) no país todo, em funcionamento desde 1998.Na Bahia, 63 cidades são investigadas pelo Ministério Público Federal. No Ceará, Comissão Parlamentar de Inquérito apura suspeitas de irregularidade em 106 dos 184 municípios do Estado.No Rio Grande do Norte, quatro prefeitos foram afastados em conexão com mau uso de verbas do Fundef e outros 21 estão na mira. Já se comprovou irregularidades em Igaci e Viçosa, em Alagoas, e outros oito municípios desse Estado são investigados.

1.17 O prejuízo a moral e a ética social

A análise dos casos de corrupção no Fundef nos mostram que a degradação da coisa pública no campo educacional é uma das características da política educacional. Mas,contudo, a experiência do FUNDEF mostra que diferente dos antigos, nossa corrupção não está na degradação da coisa pública pela usura dos costumes. Estamos nos acostumando a ver os casos de corrupção do Fundef como o mau trato do dinheiro público. Evidentemente, o que queremos mostrar é que esquecemos que, esta mal versação dos fundos da educação também é causada por uma degradação moral, dos costumes. É preciso que funcionários sejam subornados, sejam corrompidos. Se alguns dos traços da democracia antiga servem para a atual, é o fato de que nesta, é a que mais se exige dos cidadãos. Precisamos exigir das autoridades competentes um maior grau de autodisciplina, em uma palavra, precisamos mais de administradores virtuosos.

Por outro lado, esperamos que o caso Fundef mostre como o desgaste também vem do fato de que a coisa pública é vista como propriedade privada. Cada governante, apropriando-se dos recursos educacionais para si, para os objetivos que vê como prioritários, concebe o público como privado. "A corrupção acaba identificada com uma desonestidade qualquer. Perde-se de vista seu sentido de desagregação do espaço público, como coisa bem pior que o prejuízo causado ao particular. Esquece-se seu efeito multiplicador do mal -melhor dizendo, seu efeito divisor desse bem que seria ávida social"(Ribeiro, p. 177.).

A discussão assim colocada, onde a corrupção na educação se torna equivalente ao crime comum, onde o político é equivalente do ladrão", o deslocamento grave é que perdemos o senso do público como algo superior ao privado. A corrupção nas contas do Fundef não é um assalto comum. Precisamos dar-lhe o sentido político. Para além de um furto, é um ataque a coisa publica, que é mais do que economia. A corrupção é um problema não pelo valo monetário que desvia, mas pelo nível das relações sociais que revela.

Ribeiro aponta que é preciso "recuperar o sentido próprio da coisa pública. É preciso devolver aos costumes, aos mores, o lugar central que ocupam numa sociedade republicana ou democrática. Vencer a corrupção não é simplesmente assegurar o bom trato do dinheiro público: é garantir o respeito ao outro, a qualquer outro, (p.179).

1.18 Conclusão

Portanto, é preciso ampliar a noção que está por trás das diversas investigações sobre o Fundef. De fato, não apenas uma boa política fiscal, parlamentar é necessária, por que não é um problema que se resuma aos recursos educacionais. Não se trata apenas de introduzir punição e justiça, mas em questionarmos como estão nossos costumes. Como a sociedade se articula ao Estado. O erro é priorizarmos de um lado, os funcionários públicos ou administradores como Estado, de um lado, e o sistema educacional, como contribuinte lesado, de outro. Os administradores desse patrimônio também são cidadãos. A corrupção na educação é mais do que do dinheiro, é dos costumes.